Toponímia é assunto muito sério

Artigo de Opinião de Manuel Isaac Correia

O nome das ruas e dos espaços permanece vivo durante séculos e revela e transporta a História, a Cultura e a Memória das comunidades para as gerações que se seguem.

Por isso a toponímia, enquanto transmissora de identidade, tem de ser tratada com o maior dos zelos, até porque não se trata uma simples construção que se não resultar se destrói ou se remodela a seguir.

A toponímia permanece ao longo de gerações enquanto veículo identitário, histórico e cultural, e é quase sempre o principal vinculador de identificação das comunidades com os seus espaços e a sua memória colectiva.

Em toponímia tem de haver regras muito claras, porque é a memória das comunidades, o passado, o futuro e a identidade que estão em jogo.

A toponímia é um assunto muito sério, que não pode andar ao sabor de modas, de conveniências, de politiquices, de momentos, de conjunturas ou de estados de alma.

Considero um erro clamoroso a escolha casuística de um nome para um local.

Admito excepções mas apenas e só em casos “do outro mundo”.

Primeiro que tudo e antes do mais há que definir critérios. Reflectir em conjunto, debater e depois decidir se se dá nomes de instituições, de pessoas, nomes históricos ou outros a um bairro, a uma zona, às ruas de uma nova urbanização – e que pessoas, políticos, personalidades da cultura e das artes, desportistas, cidadãos de mérito -, definir se se pode atribuir nomes de vivos ou não, ou só de mortos e há quanto tempo, ou só de figuras do séc. XIX para trás, por exemplo.

Definidos os critérios, há depois que estabelecer prioridades, hierarquizando nomes ou designações, sejam elas por ordem cronológica sequencial (de nascimento, de falecimento, de ordem de proposta, etc.), ou outras priorizações. Ou diferentes, para cada critério.

Depois essa listagem não é fechada, vai-se acrescentando. E quando morre uma pessoa importante – ou seja de mérito e de referência para a comunidade, ou que se insere num dos critérios já definidos e que podem ser diversos em simultâneo –  e se decide que o seu nome deve ser atribuído a uma rua, deixa de haver a tendência, a sangue quente, de ir a correr propor o seu nome para a rua onde a pessoa morava, mas vai para a lista e quando chegar a sua vez, irá para a zona dos políticos, das pessoas de cultura, dos empresários ou outra, de acordo com os critérios e prioridades definidas e em que o seu nome foi incluído.

Não invalida isto que, ou porque se quer homenagear a pessoa em vida, ou porque se lhe quer manifestar tributo logo a seguir à morte, um grupo de amigos, uma associação, uma outra entidade ou a autarquia não possam – ou não devam mesmo – colocar na casa onde nasceu, onde viveu, na escola onde leccionou, na sede da associação que serviu ou noutro local indicado, uma placa de homenagem a essa pessoa, com a descrição sumária dos seus feitos e do seu currículo.

Não se pode é tirar o nome à rua para lhe dar o nome da pessoa falecida, por muito importante que se considere a pessoa. Fazer isso é não só atraiçoar a memória do espaço através de um disparate, como o mais certo é não se conseguir o efeito pretendido de homenagem toponímica, porque a rua manterá o nome na boca do povo e a distinção pretendida não tem efeito.

Efeito tem a placa, que fica para o futuro e que lembrará, no sítio próprio, a pessoa, o facto ou a instituição que se quis imortalizar. Depois, e quando chegar a sua vez, lá terá o nome numa rua, e será uma segunda homenagem.

Critérios são obrigatórios

Pôr nomes a ruas, isso pia fino e deve obedecer aos tais critérios e hierarquização de prioridades, até porque não temos assim tantas ruas e, por ignorância, em terras pequenas, até se desperdiça a oportunidade ao baptizar arruamentos – homenageando pessoas, entidades, instituições ou memórias – com atribuição da designação de aves ou de plantas – as ruas dos passarinhos e das arvorezinhas -, desconhecendo-se que essa é uma estratégia para atribuição de unidade e de identidade a espaços sem raíz nem memória inseridos em zonas de grande crescimento urbanístico.

Outros cuidados e cautelas há a ter.

Nunca se deve atribuir nomes de pessoas vivas, a não ser em condições absolutamente extraordinárias e que serão muito raras:

– A alguém da comunidade que cometeu um acto de heroísmo absolutamente transcendente (e que por mais erros que faça na vida, o tal acto permaneça acima de tudo, como exemplo);

– A alguém da comunidade que ganhou o Nobel ou uma ou outra excepção absoluta, como ao atleta que ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, ou àquele cientista que descobriu a cura do cancro, ou ao escritor já consagrado. Ou a personalidades de reconhecido e incontestável mérito, mesmo que ainda vivas.

Mas isto são as excepções que quase só em teoria existirão.

Todos os outros comuns mortais têm direito a todas as homenagens que as comunidades lhes queiram fazer em vida, mas perpetuar o seu nome em ruas, há tempo quando morrerem ou estiverem velhinhos, e chegar a sua vez dentro da tal lista hierarquizada de prioridades, em obediência aos tais critérios consensualmente definidos.

Na maioria das terras não há critérios, não há regras e muitas vezes nem há noção.

E o disparate chega ao cúmulo de se tirar o nome histórico ou pelo menos relevante de uma rua para homenagear (ainda que com justiça) uma pessoa que ali viveu, em vez de se aguardar o surgimento de uma rua para lhe dar esse nome e colocar uma placa de homenagem e explicativa na casa onde a tal pessoa viveu.

Na verdade acaba por não se fazer a homenagem, porque a rua não muda de nome na boca das pessoas, a personalidade acaba por não ser devidamente homenageada e perdem-se todas as oportunidades, fazendo apenas asneiras.

Exemplos deste tipo não faltam… sendo certo que também há bons exemplos.

Há erros que não se podem cometer

Que fique a certeza que há erros que nunca se podem cometer na toponímia. Um deles é dar o nome de políticos da moda, a não ser em casos indiscutivelmente relevantes. E se em Lisboa podem (ou devem?) ser homenageados políticos importantes, porque é a capital do País, tal não deve acontecer num concelho de pequena dimensão, a não ser que essa personalidade tenha uma ligação efectiva a esse território e/ou a essa comunidade; nesse caso até deve ter um largo e/ou uma estátua, se na sua acção contribuiu de forma relevante para o desenvolvimento dessa terra.

E nunca, em circunstância alguma, se deve atribuir a uma rua o nome de uma figura porque está na moda…

A toponímia é algo de permanente nas urbes, indissociável da sua História, da sua Cultura e da sua Memória, não pode ser banalizada por melhores que sejam as intenções.

Caso contrário temos a asneira que vi defender um dia. Uma padaria industrial era/é muito importante para a realidade local, e a rua onde se insere designa-se mesmo Rua da Padaria. Pois um dia houve um iluminado que veio propor que a rua devia ter o nome de um padeiro que havia sido um dos diversos trabalhadores ou sócios da padaria… porque era amigo da família do senhor.

O amiguismo, as relações familiares e a política, principalmente a partidária, deveriam estar sempre afastadas da toponímia. Por higiene e para evitar contágios.

Rua do Malato

Há bastante tempo que pretendia escrever sobre esta tão importante tema que é a toponímia. A vontade avolumou-se com umas recentes propostas desgarradas, de exclusivo interesse político-partidário em Portalegre. E calhou agora em resultado de uma petição para retirar o nome do apresentador de televisão José Carlos Malato, em resultado de alegadamente ter tido que já não se sente alentejano pelo facto de o candidato presidencial apoiado pelo Chega, André Ventura, ter tido uma boa votação em Monforte, como no Alentejo, aliás a exemplo do que aconteceu no interior do País.

A atribuição do nome do apresentador de televisão à rua da Biblioteca, em Monforte, ocorreu em 2005. Essa importante artéria deveria designar-se por Rua do Convento, pois é essa a memória da comunidade e o interesse histórico-patrimonial local.

Todos nós sabemos que antigamente a pessoa importante era a mais rica da terra, depois passou a ser o senhor doutor, e que actualmente é um figurão qualquer que apareça na televisão. É a moda de cada tempo!

Que as pessoas tenham particular carinho pelo apresentador com raiz familiar na terra e que este até a promova e divulgue, todos percebemos. Que por isso se ache que lhe é devida homenagem como forma de agradecimento, todos podemos aceitar… desde que essa homenagem seja um acto público como a atribuição do nome a uma sala da biblioteca ou a uma galeria de exposiçóes, que seja um prémio com o seu nome, a outorga de uma medalha, etc., mas a atribuição do nome de uma rua a uma pessoa jovem!? Por uma questão de visibilidade momentânea!?

Estive lá na ocasião, e compreendendo a intenção não deixei de pensar que era um sério risco.

Nunca o supus, mas agora até corre a tal petição pública – outra moda – para a retirada do nome do Malato da rua.

Erros em cima de erros!

Concluindo: a Rua do Malato nunca deveria ter tido esse nome porque a pessoa não tinha idade nem, na minha opinião, estatuto para uma homenagem tão importante. Mas já que a trapalhada foi feita, se calhar o melhor mesmo é não mexer nela… ou então que se mude um dia, mas para um nome que tenha a ver com a História, a Memória e/ou a Cultura de Monforte. Talvez para Rua do Convento… dependendo dos critérios que haja definidos e das opções elencadas.

Mais placas e mais homenagens

Claro que se tem de admitir a proposição de nomes, mas sempre para integrar uma lista de prioridades, submetida a critérios definidos.

Propor um nome para aqui ou para ali, neste ou naquele momento, muitas vezes será até falta de modéstia, para não dizer incultura ou mesmo espírito ditatorial.
Porque sei que ganho uma votação, imponho a minha vontade! Há quem diga que é democracia, mas pode ser apenas imposição.

Seja o nome que seja e mereça o respeito que mereça.

Claro que na maioria das vezes estamos a falar de politiquice…

Nada disto invalida justas homenagens em momentos próprios.

Quer-se homenagear a pessoa A? Claro que sim, e pode fazer-se desde o tradicional almoço de homenagem (pós-confinamento, é claro) a tantas outras acções.

E justificando-se, uma placa de homenagem e explicativa na casa onde nasceu, onde morou ou onde trabalhou. E depois, se for o caso, que se atribua o nome, dentro do tal critério e na sequência hierárquica ou cronológica, a uma rua ou a outro espaço.

Há poucas placas de homenagem e devia haver mais. Como há poucos bustos e outro tipo de monumentos e devia haver mais.

Dão expressão a ajudam a construir a nossa memória colectiva, dão exemplo de cidadania, eneriquecem as comunidades e reforçam a identidade.

Bons e maus exemplos

Temos, na nossa região, bons e maus exemplos.

Castelo de Vide tem, possivelmente, dos melhores exemplos em termos de definição de critérios que se conhece na zona.

O exemplo da toponímica de Évora, riquíssimo, e em que nunca se mexeu nos nomes antigos, deveria ser seguido.

Em Portalegre temos bons e maus exemplos.

Alguns maus de há um século, mas com a desculpa de não haver na altura preocupações ou critérios com toponímia.

E assim temos a Rua da Carreira a mudar de nome para uma homenagem e depois por política conjuntural a “desfazer-se” a homenagem e a inventar-se pretexto para outro nome. Sendo a Rua da Carreira sempre uma ligação directa de fora do burgo medieval para uma centralidade, a manutenção do nome é importante pelo que revela. Cá mudou para João de Azevedo Coutinho e depois para 19 de Junho.

O Côrro, lugar de corridas de touros, mudou para Praça do Príncipe Real e depois para Praça da República.

A Rua dos Canastreiros será sempre mais importante que a 31 de Janeiro.

Uma Rua Nova num casco histórico significa que é uma rua de cristãos-novos. Pois cá mudou para Diogo da Fonseca Achiolli.

… e a Rua do Pirão nunca será Mouzinho de Albuquerque, como a Rua do Mercado nunca deixará de o ser.

E para irmos para outra zona da cidade, a Rua de Santo André será sempre mais importante que a Alexandre Herculano.

Por outro lado e porque as entidades não foram competentes nem céleres, o povo teve de atribuir nome á “rotunda do navio” e à “rotunda do Modelo”.

Apesar de tudo há alguns bons exemplos, como o facto de ter sido estabelecido um critério para a toponímia da Zona Industrial, a exemplo também do que sucedeu com os Bairros do Atalaião, Assentos e Areeiro (não estamos a concordar os discordar dos nomes mas apenas a apontar como positivo o ter havido um critério prévio definido).

Artigo publicado na edição 708 do Jornal Alto Alentejo de 10 de Fevereiro de 2021

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