Sónia Silva e a sua luta contra o cancro

«A minha disponibilidade para falar abertamente do meu cancro, de como afectou a minha vida e de tudo o que tenho passado, é precisamente para que as pessoas percebam que é real, e que pode acontecer a qualquer pessoa, todos estamos sujeitos»

O pedido que lhe fizemos para que nos contasse a sua história foi aceite sem hesitar. Sónia Silva sabe, por experiência própria, que por muito difícil que seja falar sobre este assunto, é essencial que se fale cada vez mais e, sobretudo, tem esperança que cada história que é contada possa ser mais um passo que é dado para a consciencialização da importância que um diagnóstico precoce pode ter nesta guerra. Uma guerra contra um inimigo que ninguém controla e ao qual ninguém é imune.

«Nas grandes batalhas da vida, o primeiro passo para a vitória é o desejo de vencer» (Gandhi)

Os sintomas nem sempre se manifestam de forma alarmante, e por vezes há sinais que são desvalorizados, seja porque nos convencemos de que só acontece aos outros, ou até mesmo por ser mais fácil acreditar que “não é nada de grave”, ou que “não há razões para preocupações”. Era assim que Sónia Silva, tal como grande parte das mulheres, pensava antes de receber o diagnóstico que lhe mudou a vida para sempre.

Actualmente em Portugal surgem seis mil novos casos do cancro da mama por ano, 11 por dia, dos quais apenas seis por cento têm incidência em mulheres com menos de 40 anos. Sónia faz parte dessa percentagem, e sendo ela uma sobrevivente e uma lutadora, a sua história faz-nos perceber o quanto esta é uma luta desigual, que deixa sequelas para o resto da vida.

O choque do diagnóstico, as dúvidas e incertezas, as duras sessões de quimioterapia, a queda do cabelo, as operações, é todo um processo para o qual ninguém está preparado mas, como refere Sónia, é uma luta que é necessária, numa guerra contra um inimigo que «é muito mais forte que nós».

Linda por fora e linda por dentro, Sónia Silva é de Portalegre, casada, tem dois filhos, é técnica superior de contabilidade da Entidade Regional de Turismo do Alentejo, e ainda dá aulas de contabilidade na Escola Superior de Tecnologia e Gestão e na Escola de Hotelaria. Assume-se como uma mulher feliz, divertida e vaidosa, no sentido em que gosta de cuidar de si, da sua aparência, e sobretudo de se sentir bonita.

Quem a vê não consegue sequer imaginar o que Sónia teve que enfrentar nos últimos três anos. A “capa”, como em tom de brincadeira chama a toda a maquilhagem e acessórios de beleza, sem os quais não sai de casa, foi a sua principal armadura para se defender de um cancro que chegou sem pedir licença, e que apesar de todas as mazelas que fez, nunca lhe conseguiu tirar a vontade de viver e de sorrir.

Foi em 2014 que Sónia recebeu o diagnóstico de que tinha cancro da mama, grau IV, já numa fase bastante agressiva. Três anos antes tinha-lhe sido diagnosticado um nódulo no peito, mas benigno. «Sem perceber nada do assunto, questionei quais as diferenças. Foi então que percebi que há muitas dessas massas gordas, caroços… que é normal as mulheres terem no peito, e os únicos que são problemáticos são os nódulos, porque podem degenerar, como também pode nunca acontecer. A minha inexperiência, e o facto de também não ter nenhum caso de família com cancro da mama, fez-me ficar tranquila e sinceramente achei que não seria muito preocupante. Mas fui aconselhada a todos os anos fazer uma observação de prevenção, e assim fiz», recorda.

«A minha disponibilidade para falar abertamente do meu cancro, de como afectou a minha vida e de tudo o que tenho passado, é precisamente para que as pessoas percebam que é real, e que pode acontecer a qualquer pessoa, todos estamos sujeitos»

Sónia suspeitou que algo não estava bem quando, um dia, ao deitar-se, sentiu um caroço no peito esquerdo. Nessa altura frequentava o Mestrado em Évora, e andava numa fase bastante cansada, em que se sentia exausta, mas associou esse cansaço a toda a agitação do momento que estava a viver. Descobriu depois que esse era já um sintoma, o único, que teve antes de descobrir que tinha cancro da mama.

«Nós não temos noção do quanto é grave até nos bater à porta. E como falar de cancro é algo que incomoda tanto, preferimos nem pensar nisso», constata, explicando que foi precisamente por isso que, e apesar da insistência do marido, só mais de um mês depois de sentir o caroço é que foi a uma consulta.

«Sentia-me tão cansada, e já tínhamos férias marcadas, por isso achei que o que precisava era de descansar e depois então vi o que era aquilo. Eu já tinha nódulos diagnosticados e mesmo assim não dei a devida importância. Talvez se tivesse ido alguns meses antes não teria que ter passado por metade do que passei, o cancro não estaria já metastizado. Eu tive um cancro extra capsular, ou seja, já tinha passado para a circulação sanguínea, e por isso também foi mais complicado».

A sua situação é um bom exemplo daquilo que, agora, Sónia defende que é imprescindível que toda a gente perceba, sobretudo quando se fala de cancro da mama, em que qualquer sinal de alerta deve ser tido em consideração. «Quem sabe se o diagnostico precoce não evitava ter feito todos os tratamentos que fiz e que são verdadeiramente devastadores, marcam-nos para o resto da vida, e deixam-nos com muitas sequelas. É de facto mesmo muito importante termos essa consciencialização, que nem eu própria tinha até estar a viver este drama, e por isso agora farto-me de chamar a atenção», alerta.

Foi numa consulta no Centro de Senologia que Sónia recebeu o diagnóstico que não queria ouvir. «Na consulta expliquei à médica que tinha ido fazer o controle anual seis meses antes e o que se tinha passado, que notei um caroço no peito esquerdo, mas que desapareceu logo. A médica fez a ecografia ao peito em questão e disse-me para não me preocupar que estava tudo bem, mas ao fazer a ecografia no peito direito a cara dela mudou completamente, assim como a da assistente, e eu percebi logo que algo não estava bem. E disse-me logo naquele momento, antes mesmo de uma mamografia, que tinha cancro da mama…».

Sónia tinha ido à consulta acompanhada do marido e do filho, mas decidiu não lhes contar naquele momento, dizendo apenas que teria que fazer mais exames para saber o que se passava. «Achei que não lhes podia dizer assim, sem mais exames que confirmassem…».

Ao fim dessa semana tinha os exames que a médica pediu todos marcados, mas só no dia antes de ir fazer a biópsia é que contou ao marido o que se passava. «A única forma de descrever a reacção dele é dizer que ficou passado comigo», confidencia Sónia, que neste momento já se ri da situação.

De seguida o processo foi todo muito rápido porque era um cancro muito agressivo e que precisava de intervenção imediata. «Fui encaminhada para o IPO, com um excelente médico, o Dr. João Vargas Moniz, fui muito bem acompanhada, e ao fim de 15 dias fui operada. Durante a operação percebeu-se que o carcinoma estava muito maior do que era expectável, e ao contrário do que estava previsto inicialmente, o médico teve mesmo que fazer um corte na mama».

O tecido retirado foi para análise e foi-lhe retirado o gânglio sentinela que estava metastizado. Uma semana depois, Sónia recebe um telefonema do médico a informá-la de que teria de ser novamente intervencionada, para fazer esvaziamento axilar. «Passados 15 dias fui novamente operada, tiraram-me os gânglios todos. Eu tinha dois carcinomas na mesma mama, os dois nódulos detectados, um sem grande problema e foi extraído, o outro invasivo. Tinha duas neoplasias na mesma mama», explica-nos, clarificando que, «como dizia o meu oncologista, um dos grandes problemas que eu tinha era ser jovem, porque isso significa que as células se desenvolvem e regeneram mais rapidamente, e uma vez que o grau do cancro já era de nível IV, mais difícil ainda era de controlar».

E é a partir deste momento que começa o seu historial de tratamentos, as quimioterapias, a radioterapia e depois a parte terapêutica.

«Fiz várias sessões de quimioterapia, e consegui sempre fazer, apesar de haver alturas mais difíceis, e sobretudo as três últimas sessões foram muito “pesadas”. Mas não é nada fácil. As primeiras ainda consegui lidar bem, mantive-me a trabalhar, ainda que parcialmente, mas é duro… lembro-me de uma vez em que fui encerrar contas e quando voltei do trabalho o meu marido teve que me levar ao colo para casa, porque eu deixava mesmo de andar».

Sónia admite que procurou lidar com tudo o que passou de uma forma leve, e com a sua maneira de ser despreocupada e divertida, além de que o facto de ter duas crianças em casa, que «eu queria proteger ao máximo de me verem em baixo, porque queria que eles sofressem o menos possível com esta situação», ajudou a que encontrasse forças, e foi no sorriso, sendo uma pessoa que adora sorrir, que encontrou o seu grande aliado nesta dura batalha.

«Num dos dias piores que tive em todo este processo, e que foi a seguir a uma sessão de quimioterapia, estava deitada e não conseguia fazer só o simples movimento de me virar na cama. Não sei onde fui buscar a força, mas a minha preocupação era como seria os meus filhos chegarem a casa e encontrarem-me assim, e pedia ajuda a Deus para que não me vissem assim.»

Proteger o mais possível quem lhe era mais próximo, foi sempre dos principais focos de Sónia durante todo este processo de luta contra o cancro. Reconhecendo que era preciso uma grande força de vontade e um esforço muito grande para não se deixar vencer pelas dores, pelo cansaço e pelas limitações de todo o processo, Sónia explica que todos os dias fazia questão de que os filhos, ao chegar a casa, a encontrassem maquilhada e arranjada, como era habitual antes de isto lhe acontecer. «Sempre gostei de ter esse cuidado comigo, e faz-me bem. Por isso se já me arranjava e pintava – eu pinto sobrancelhas, ponho pestanas postiças, a cabeleira, lenços… uso tudo o que tenho para me sentir bonita, e nessa altura passei a fazê-lo com ainda mais vontade».

Sónia enfrentou o cancro com a mesma garra com que vive o dia-a-dia, e é por isso que mesmo com a doença não deixa de ser ela própria, nem de fazer o que sempre fez. «Quando fiz uma trombose axilar, e tinha de fazer fisioterapia na zona de onde tirei os gânglios linfáticos, ia à fisioterapia todos os dias a Lisboa. E fiz o que faria habitualmente, ia e vinha a guiar. Só deixei que o meu marido me acompanhasse nas sessões de quimioterapia, e só nas iniciais do peito. Depois, quando tive cancro do endométrio, já ia sozinha porque foi algo que passou a fazer parte do meu quotidiano».

Sónia ficou conhecida no IPO como “a alentejaninha bem-disposta”, porque era aquela doente que fazia mais de 200 quilómetros, a conduzir, para ir fazer sessões de quimioterapia e chegava sempre bem-disposta, a sorrir, com os seus saltos altos e o seu estojo de maquilhagem, que foi também terapêutico para algumas das suas colegas de tratamentos.

«As pessoas são depressivas por natureza, e de facto nós ficamos com muito mau aspecto, com uma cor esquisita, pálida, sem cabelo… e isso afecta bastante a auto-estima. A mim ajudou-me a sentir-me melhor, e como acho que sentirmo-nos bonitas faz bem ao ego, e que não precisamos de andar com aspecto de doente e de ter sempre as pessoas a olhar para nós “como coitadas”, pois se já não é uma situação fácil, se tivermos algo que nos melhore a auto-estima sei que isso ajuda a passar o dia-a-dia. O cancro não tem rosto, ele está cá dentro, e eu defendo que o devemos combater com todas as nossas armas, e a nossa auto-estima pode ser uma».

«Um dos dias mais marcantes da minha vida! Já mais esquecerei o som daquela máquina, o cabelo a cair junto com lágrimas, muitas… e uma dor indescritível… há memórias que ficam marcadas para todo o sempre»

«Foi horrível o momento em que rapei o cabelo», confessa Sónia, descrevendo aquilo que qualquer mulher deve sentir ao ver-se assim sem cabelo, sobretudo por tudo o que esse acto representa.

«O médico explicou-me que, embora dependesse de pessoa para pessoa, era provável que na segunda semana do ciclo de tratamento o cabelo começasse a cair. Na semana seguinte ao primeiro ciclo de tratamento, ao mexer no cabelo, percebi que já estavam a cair madeixas. Nesse momento decidi que ia já rapar o cabelo».

Sónia lembra que o som da máquina tem um efeito «indescritível», e que torna o momento «pavoroso», mas garante que assim que terminou, e chorou o que tinha a chorar, se recompôs, e o facto de não ter cabelo deixou de ter importância.

«Fiquei sem cabelo, sem sobrancelhas, sem pestanas… para qualquer mulher é muito difícil ver-se sem cabelo e com cortes no corpo, isso afecta a nossa auto-estima e a nossa imagem enquanto mulheres. Eu gosto de cuidar de mim, e a estética é algo com que me preocupo, mas perante tudo o que estava a viver não o fiz. Todas essas questões da imagem passam a ser secundárias quando o que mais importa é fazer o que é necessário para lutarmos pela nossa vida, isso sim, é o mais importante de tudo».

«Senti o chão a fugir-me… achei que não estava preparada para repetir todo o processo. Mas tive que me consciencializar de que tinha de ir à luta, porque o meu foco é sempre a cura»

Uns meses depois de ter terminado as sessões de quimioterapia e radioterapia, e quando achava que o pior já poderia ter passado, Sónia repara que um sinal que tinha de nascença, na perna, se começou a alterar, e a ficar muito negro no meio. «Numas das minhas visitas regulares ao oncologista falei-lhe no sinal. Mandou-me de imediato para a dermatologia, nesse mesmo dia. O dermatologista também não gostou do aspecto e dado o meu historial decidiu retirar o sinal, logo nesse dia», recorda, confessando que «foi mais um choque», pois apesar de algo “pequeno” face a tudo aquilo que tinha passado, o receio do que possa surgir um diagnóstico temível é agora algo muito real para Sónia.

Passado uns dias, «estava num Congresso na Madeira e recebo um telefonema do médico a informar que era um melanoma. Explicou-me que foi tudo retirado, porque tinha desconfiado logo o que seria… Nessa tarde fechei-me no quarto, e passei a tarde e noite a dormir, porque não consegui processar o que me estava a acontecer, novamente. No outro dia levantei-me e pensei que não tinha outra hipótese senão voltar para luta».

Sónia foi às consultas que eram necessárias e afinal não foi preciso fazer tratamentos porque o melanoma estava circunscrito àquela zona e foi logo retirado, além disso também não precisou fazer mais terapêutica porque ainda estava a fazer por causa do cancro da mama, a qual ainda hoje continua.

Neste processo todo, e além da quimioterapia e da radioterapia, Sónia fez também vária medicação, o que a levou a ser vigiada por uma ginecologista, uma vez que um dos tratamentos do cancro da mama tem uma probabilidade, de cerca de 30%, de causar cancro do colo do útero. «Eu inclusive procurei uma segunda opinião, porque fiquei na dúvida sobre esse efeito, mas a questão é a do custo/beneficio, o benefício de fazer o tratamento é superior ao risco que tem. É preferível fazer o tratamento, mas tendo sempre de ser acompanhada pela ginecologia», esclarece-nos.

«E não é que caí nos 30%!… Soube os resultados da biopsia que deu positiva numa sexta-feira, na terça-feira seguinte fui operada. Fiz histerectomia total e dei início a mais um ciclo de tratamentos, mais quimios, embora não tão agressivas como as da mama. Não sei se é mesmo assim ou se senti isso por o meu corpo já estar habituado.

Nessa altura senti o chão a fugir-me… achei que não estava preparada para repetir todo o processo que já tinha vivido. Mas tive que me consciencializar que tinha que ir à luta, porque o meu foco é sempre a cura».

«Nunca quis meter a cabeça de baixo da areia, sabia a gravidade do cancro, tinha consciência de que tinha que fazer a quimioterapia e todos os tratamentos necessários. Preferi lidar com a realidade, por mais dura que fosse, e saber o que tinha de enfrentar»

Todos os livros que li sobre este assunto, se iniciavam com a questão do “porquê a mim?”, e curiosamente essa foi uma questão que eu nunca coloquei. Até hoje, e já tive três neoplasias». É assim que Sónia nos responde quando lhe perguntamos se esse foi o seu primeiro pensamento quando recebeu o diagnóstico. E explica-nos ainda que «nunca fiz essa pergunta porque acho que, se o fizesse, estaria a dizer: “porquê a mim, e não a outro?”, e isso seria, para mim, uma forma egoísta de ver este problema, e eu não desejo a ninguém que passe pelo que eu passei».

Sónia relata-nos que, desde o momento em que recebeu o diagnóstico do cancro da mama, procurou ler toda a informação possível sobre o assunto, pois apesar de todos conhecermos a palavra, a maioria das vezes é informação muito vaga o que verdadeiramente se sabe do assunto. «É um desconhecimento daquilo que vamos enfrentar, e para mim foi reconfortante saber o que iria acontecer, conhecer outras histórias, porque de facto é algo que nos é mesmo estranho, e quer queiramos quer não, associamos sempre a palavra cancro à morte», afirma.

Em todas as situações por que já passou, sempre manteve uma postura optimista, mas sempre consciente da realidade do que estava a viver: «nunca quis meter a cabeça debaixo da areia, sabia a gravidade do cancro, tinha consciência de que tinha que fazer a quimioterapia e todos os tratamentos necessários. Preferi lidar com a realidade, por mais dura que fosse, e saber o que tinha de enfrentar», assume.

Presentemente, é raro não ir uma vez por semana a Lisboa. «Vou continuar a estar sempre vigiada. Ainda há pouco tempo tive um linfedema, para o qual ainda estou a fazer tratamentos, porque, como não tenho gânglios linfáticos à direta, a linfa não tem como circular, e isto é algo que não dá para fazer nada, é já para o resto da minha vida», explica-nos.

«Dou muito mais valor à vida e passei a hierarquizar os meus problemas e o meu sofrimento. Neste momento tenho uma perspectiva completamente diferente das coisas»

Sónia não tem dúvida que qualquer pessoa a quem foi diagnosticado cancro, ou vive um drama desta gravidade, em que «é a nossa vida que está em risco», muda completamente a sua maneira de encarar a vida.

«Depois de tudo o que passei, dou muito mais valor a algo tão simples como o acordar todos os dias. Acordo feliz só pelo facto de ter essa oportunidade», reconhece, esclarecendo que passou a dar muito mais valor à sua vida, e, sobretudo, «passei a hierarquizar os meus problemas, o meu sofrimento, e neste momento tenho uma perspectiva completamente diferente das coisas».

Afirma mesmo que «estar viva, ter a possibilidade de ver os meus filhos crescer é uma coisa fabulosa, e é algo, porque achamos que é garantido, a que não damos o devido valor até nos sentirmos ameaçados», Sónia entende que essa foi a grande lição que reteve para o seu dia-a-dia.

Convicta de que a sua forma de estar na vida foi extremamente importante para ajudar a superar esta doença, assume que «se não fosse esta minha maneira de ser, tenho a certeza que, ou já tinha pedido a reforma, ou já morrido porque deixava de fazer os tratamentos, porque acabaria por desistir de lutar… mas a minha vontade de viver e continuar a lutar pelos meus objectivos de vida é o que me faz levantar a cabeça e sair de casa todos os dias, continuar a dar aulas, que é das coisas que mais adoro na vida, e sobretudo continuar a sentir-me activa», garante.

Para além da sua força interior, Sónia sabe que uma parte importante, essencial mesmo, na sua luta foi a família: «a união e o carinho da minha família foram determinantes para o meu processo de cura, de vitória, de conseguir alcançar os meus objectivos desta forma. Sempre estiveram todos muito unidos em meu redor, juntamente com o meu grupo de amigos, que são os melhores do mundo. E depois de tudo o que passei fiquei com a certeza de que não preciso de muitos, basta aquele grupo que é excelente, e que foram também um suporte extraordinário».

Claro que quando fala na família, o marido e os filhos merecem uma palavra de destaque, porque foram, sobretudo eles, quem viveu mais de perto com a luta de Sónia. «O meu marido é extraordinário e é um grande companheiro, foi e continua a ser um apoio incansável. E os meus filhos foram sempre a minha principal preocupação, porque não queria, de maneira nenhuma, que eles me vissem sofrer, mal ou debilitada, e era por eles que ia buscar forças, sabe Deus onde, para minimizar os efeitos de tudo isto nas suas vidas», recorda, confidenciando ainda que foi, sobretudo a sua filha, sendo a mais velha, que mais notou a mudança. «Notei que a minha filha se tornou adulta mais depressa e de uma forma extraordinária. Ela agora tem 20 anos, mas o meu cancro surgiu numa altura delicada dos estudos e podia ter corrido mal, mas felizmente ela conseguiu encontrar um equilíbrio extraordinário. Porque teve a falta da mãe e do pai durante bastante tempo, a mãe porque estava em tratamentos ou a ser operada, porque neste espaço de tempo fui operada seis vezes… o pai a acompanhar-me… e ela assumiu o papel de mãe do irmão e, nem sei como, mas conseguiu lidar com tudo, sem se perder do seu caminho, o que me deixou muito orgulhosa», garante.

«A morte andou sempre lado a lado comigo, e é algo em que continuo a pensar. É verdade que é uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa de um dia para o outro, mas quem passa por algo assim sente essa fragilidade diariamente, porque é algo que se torna muito próximo e real»

Quando lhe perguntamos qual foi a primeira coisa que pensou quando soube que tinha cancro da mama, Sónia confidencia-nos que a morte foi o seu primeiro pensamento, sobretudo tendo em consideração o estado avançado em que já se encontrava o cancro.

«Sou uma pessoa que lida muito bem com o sofrimento e com a dor, também sou muito controlada, mas a verdade é que a ideia de que poderia morrer nunca me saiu da cabeça. E era como se essa possibilidade estivesse sempre atrás de mim, e ganhava força cada vez que uma companheira morria, e perdi muitas nesta caminhada, porque isso lembrava-me que tinha uma espada apontada à cabeça e já a picar-me», relata, referindo que «a morte andou sempre lado a lado comigo, e é algo em que continuo a pensar. É verdade que é uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa de um dia para o outro, mas quem passa por algo assim sente essa fragilidade diariamente, porque é algo que se torna muito próximo e real», constata.

Recentemente, Sónia fez uma ressonância devido a um nódulo no peito esquerdo, que já estava identificado, e aguarda agora a decisão terapêutica, e se será intervencionada ou não, sabendo apenas que é um nódulo que não está em estado de malignidade, mas que «é um dos tais que pode degenerar», e é por isso que «agora já não os largo e estou sempre com atenção ao mínimo sinal. É uma luta diária…», assume.

«Continuo com uma fé inabalável. Agradeço tudo a Deus, e também por isso acredito que, de alguma maneira, isto surgiu na minha vida por algum motivo»

Quando recorda tudo pelo que passou nestes últimos anos, Sónia consegue falar abertamente da doença e sem se emocionar, mas é quando recorda a mãe, que faleceu há 11 anos, que as lágrimas teimam em cair. A lembrança surge quando lhe perguntamos se o facto de ter superado o cancro lhe deu mais fé.

Sónia afirma-se como uma pessoa religiosa, e é sobretudo bastante grata por tudo o que tem na sua vida, pelo que a doença não a mudou em nada nesse aspecto, embora reconheça que a sua fé a ajudou bastante a lidar com tudo.

«Continuo com uma fé inabalável. Agradeço tudo a Deus, e também por isso acredito que, de alguma maneira, isto surgiu na minha vida por algum motivo. Perder a minha mãe, foi das piores coisas que me aconteceu na vida… acho que posso ter mais não sei quantas terapêuticas para fazer, que nada chega à dor da perda da minha mãe. Mas ao mesmo tempo, acho que, se ela fosse viva, seria insuportável ver-me sofrer e passar por tudo o que passei».

Em Maio deste ano, Sónia conseguiu outra grande conquista pessoal. Depois de já ter feito peregrinações anteriores, este ano, ainda que bastante frágil, conseguiu completar a peregrinação a Fátima, percorrendo a totalidade do caminho a pé, algo que a marcou e que a deixou orgulhosa, porque, mais uma vez, teve a certeza de que nada a deve impedir de continuar a lutar pelos seus objectivos.

«É preciso uma força sobre-humana para lutar, porque ao mínimo descuido, ele (cancro) está lá para nos levar, e é por isso que não nos podemos distrair nem um segundo»

Certa de que a forma, em termos psicológicos, com que cada doente encara o seu cancro pode ter um papel preponderante para a cura, no seu caso diz mesmo que foi essencial. «Por tudo aquilo que passei, acredito que quando uma pessoa se entrega à doença torna-se mais difícil de a combater, e o desgaste acaba por nos fazer desistir. É preciso uma força sobre-humana para lutar, porque ao mínimo descuido, ele (cancro) está lá para nos levar, e é por isso que não nos podemos distrair nem um segundo», garante.

Sónia não sentiu necessidade de ter apoio psicológico, diz mesmo que, com a sua boa-disposição e o seu estojo de maquilhagem, tem sido ela a psicóloga de muitas das suas companheiras, e que isso sim, a ajudou, mas reconhece que há dias que são mais complicados, e que não é de todo fácil viver com as sequelas que o cancro lhe deixou.

«Há dias em que tenho dificuldade em adormecer, há dias em que me apetece chorar, e choro, mas felizmente tenho tido uma equipa de soldados extraordinária ao meu redor, que tem sido essencial para me manter com força para lutar», congratula-se.

Uma mulher, um ser extraordinário que é uma inspiração de vida vivida, por isso “Viva a Vida”.

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