Dividida entre o canto lírico, o teatro e a televisão, a vida de Manuela Cassola resume-se a três paixões. Aos 92 anos e após 50 anos de carreira, interpretando algumas das mais emblemáticas óperas mundiais e dando vida a centenas de personagens em várias telenovelas, séries e peças de teatro, a actriz e cantora lírica regressa a Portalegre, cidade onde nasceu e viveu até aos nove anos. Figura conhecida do panorama artístico, tendo pisado o palco juntamente com grandes nomes da cultura portuguesa, e também do grande público, sendo ainda hoje conhecida por “Justina”, a maternal governanta da família Mendes da série da TVI “Inspector Max”, Manuela Cassola esteve à conversa com o nosso jornal, numa grande entrevista de vida em que recordou a sua infância passada na casa dos seus avós em Portalegre e a sua carreira, desde os seus primórdios nos coros do Teatro São Carlos até à última personagem que interpretou na novela da SIC “Rainha das Flores”, em 2016.
É no meio do “silêncio e tanta gente”, como um dia cantou Maria Guinot, que Manuela Cassola passa as tardes invernosas no Alto Alentejo. Na cafetaria do Hotel José Régio, antigo Café “O Facha”, espaço nobre da cidade que acolheu ilustres personalidades da época, a actriz bebe diariamente o seu solitário galão. Nem as suas coloridas boinas ou os casacos multicores, despertam a atenção de quem por ali passa na desenfreada correria do dia-a-dia.
Foi na tarde de um sábado solarengo, com vento frio que fazia tremer o corpo, que encontrámos Manuela Cassola, cumprindo assim a promessa de a acompanhar num café e conversar. Sorriu, acenou e convidou-nos a sentar. A partir dali foi ela a protagonista da história e quase que parecia estar em palco, tal era o movimento das mãos e as expressões faciais enquanto recordava a sua vida.
Maria Manuela Cassola Ribeiro nasceu em Junho de 1925, em Portalegre. «Fui criada na Estrada da Serra, numa casa que tinha o número 20». Era a casa dos seus avós com quem foi viver aos três meses após da morte da sua mãe. «Deixou sete filhos, as mais velhas foram para o Instituto do Professorado Primário, incluindo um rapaz, outras duas ficaram com uma tia que não tinha filhos e eu, como era a mais pequenina, fiquei com a minha avó».
Foi ali, onde acaba a cidade e começa a Serra de S. Mamede, que viveu até aos nove anos, altura em que o pai, que trabalhava nas Finanças, foi transferido para a repartição de São Vicente, em Lisboa.
«A música estava toda lá»
Já em Lisboa, impulsionada pela transferência do pai, Manuela Cassola vai viver para a Graça e é no meio dos alfacinhas que vive a sua juventude, numa altura em que a Ópera vivia momentos de ouro e em que a rádio era a companhia das famílias e dava largas à imaginação de muitos.
«Ouvia muita rádio e gostava de imitar as cantoras de Ópera, mas como não sabia inglês falava uma espécie de inglês macarrónico. Ainda assim a música estava toda lá».
Foi este amor pela música que levou a que estudasse canto lírico, tendo como professora Maria Antónia Palhares que a incentivou depois a tirar o curso de teatro do Conservatório Nacional porque, «dizia ela, um cantor tem que se saber movimentar na cena, pois há cantores que só sabem cantar com as mãos nos bolsos e não sabem o que fazer às mãos. De maneira que fui para o Conservatório e tirei o curso de teatro, ao mesmo tempo que tinha aulas particulares de canto».
Em duas frentes ao mesmo tempo, numa tarefa que parecia quase impossível, a jovem Manuela Cassola foi eximia e consegue a melhor classificação, 18 valores, do curso, o que lhe valeu o ingresso no elenco do Teatro Nacional, onde pisou os palcos com grandes nomes do teatro à época. «Naquela altura os actores mais bem classificados tinham direito legal a um ano de estágio no Teatro Nacional e assim a conviver com os grandes actores da época como a D. Amélia Rey Colaço, Mariana Rey Monteiro, entre outros».
Já com o curso terminado e apesar de ter tido a melhor nota, a escassez de trabalho na área do teatro e uma sugestão da sua professora de canto levou a que a jovem actriz se voltasse novamente para a música e é então que ingressa nos coros do Teatro Nacional de São Carlos. «O canto lírico em Portugal estava reduzido ao São Carlos e, segundo a minha professora, nos coros sempre podia arranjar conhecimentos musicais», explica.
Longe da ideia, hoje pré-concebida, de que os artistas ganham muito dinheiro, Manuela Cassola teve de arranjar um emprego fixo num escritório, «onde entrava às 9h e saía às 18h», porque os coros «eram um ofício mal pago». Isto obrigo-a a manter as duas actividades., ainda assim, nesta altura, conseguiu papéis dramáticos em várias óperas, interpretando papéis em obras como “La sonnambula” de Bellini, ” Lucia di Lammermoor” de Donizetti, e algumas peças de Mozart.«Nessa altura tinha uma voz lírica muito bonita e chegava ao Fa, fazia a escala toda e deixava todos espantados». Foi a sua voz que chamou a atenção do jornal “A República” que viria a publicar uma notícia e assim catapultar o nome de Manuela Cassola, numa época em que as grandes óperas eram interpretadas por artistas da França e Itália.
Do palco para a televisão
Cansada do trabalho de escritório e dos coros do Teatro Nacional de São Carlos, que mantinha em simultâneo e que a obrigavam a chegar à 1h a casa, Manuela Cassola ingressa na Emissora Nacional. «Começaram por me dar papéis pequenos e comecei por entrar na parte declamada e depois fiz várias radionovelas», onde chegou a trabalhar com grandes actores como Chambel Dinis e Assis Pacheco. Entretanto passou pelo Teatro Estúdio Mário Viegas, trabalhando directamente com o próprio e depois com Juvenal Garcês, foi este último que «conseguiu mexer uns cordelinhos» e arranjar-me trabalho na rádio e na televisão.
«A televisão aparece de forma diferente na minha vida, até porque já tinha nome do teatro», conta.
Começa a trabalhar em televisão em 1996, onde participa em várias séries e telenovelas, sendo as mais emblemáticas “Passerelle” (1988, RTP), “A Banqueira do Povo (1993, RTP), “Camilo & Filho (1996, SIC), “Jardins Proibidos” (2000, TVI), “Super Pai” (2001, TVI) e “Inspector Max (2004, TVI), entre muitas outras participações, sendo a última na novela “Rainha das Flores”, transmitida em 2016 pela SIC.
Justina ou Manuela?
Apesar do seu longo e rico currículo, Manuela Cassola fica conhecida junto das novas gerações como “Justina”, a personagem que incarnou na série de grande sucesso “Inspector Max”, que foi transmitida na TVI entre 2004 e 2005.
A história girava à volta de um cão, “Max”, que viria a ser adoptado pela família de Jorge Mendes, um prestigiado inspector da Policia Judiciária, que viria a ter no animal um fiel companheiro de trabalho e peça fundamental para a resolução dos crimes.
Manuela Cassola integrou as primeiras duas temporadas deste projecto ao lado de actores como Ruy de Carvalho, Fernando Luís, Sara Butler, Afonso Maló, Sandra Celas, Rui Santos, entre outros.
A actriz recorda com carinho este projecto e todos os colegas com quem trabalho e revela que «foi o cão que deu o nome à série porque, na vida real, chamava-se “Max”.
A série revelou um grande sucesso de audiências para a TVI, conquistando os eu horário na época, e ainda hoje é transmitido durante as manhãs de fim-de-semana.
«Foi um sucesso muito grande, de tal ordem que as crianças na rua quando me viam chamavam-me Justina», refere a actriz.
Regresso às origens
Hoje, aos 92 anos, com uma vida cheia de bons momentos e um currículo invejável, Manuela Cassola regressas «às origens» e explica que o fez «porque sempre pensei em voltar à minha terra». Garante que o «faz com gosto» e lembra que, apesar da azáfama das lides artísticas, sempre «mantive uma ligação espiritual com esta cidade, pela qual sinto um enorme carinho».
Considerando que a idade não é problemas na sua profissão, Manuela Cassola garante que a sua carreira ainda não chegou ao fim e «se me chamarem para fazer uma novela eu vou», pois «a carreira de uma actriz nunca acaba, vai até ao fim da vida. Dura enquanto eu tiver ouvido, voz e memória. Todos os actores fazem falta numa novela, os velhos e os novos».
Olhando para trás, a actriz garante «ter um grande orgulho» na carreira que construiu «sempre com dignidade, sem invejas dos colegas, sem imitar ninguém e sempre virada para as pessoas e não para mim própria», remata.