Chamar nomes nem sempre é feio – Tratar as coisas a pontapés

Artigo de Opinião de António Martinó de Azevedo Coutinho

O director deste jornal e meu amigo Manuel Isaac Correia dedicou uma página da última edição do seu semanário a ecos da recente contestação toponímica na vizinha vila de Monforte. Chamou às suas reflexões: Toponímia é um assunto muito sério. Eu acrescento: … tratado muitas vezes com leviandade.

O episódio em apreço é paradigmático. Não reside no actual protesto a gravidade maior do caso pois esta aconteceu no acto da atribuição toponímica, gratuito e populista q.b..

Competindo às autarquias locais a respectiva responsabilidade toponímica, alguns municípios dispõem de uma comissão consultiva e até de um regulamento específico para o efeito. Se analisarmos alguns destes, encontramos princípios comuns assentes numa coerência simples e relativamente funcional, baseada em lógicas regras de utilitário bom senso. Quando Monforte atribuiu honrarias inerentes à inscrição toponímica a um seu filho, efémera vedeta do mundo da comunicação social, vulgar, actuante e, sobretudo, vivo, rompeu tácitas regras e desde logo se sujeitou a eventuais e desagradáveis consequências, como a presente contestação. Populismo com populismos se paga…

A importância da toponímia assenta sobretudo na sua função fundamental de divulgação e perpetuidade de história, personalidades, cultura, usos e costumes, eventos e efemérides preferencialmente de âmbito local, mas também no facto de constituir um eficiente sistema de identificação e referenciação geográfica.

A toponímia portalegrense é curiosa e diversificada, resultando da sobreposição temporal de sucessivos critérios e modas que alteraram de forma sensível nomenclaturas originais que terão origem em épocas seculares. Se consultarmos as relações que Fernando Carita coligiu e publicou na sua obra Portalegre – a cidade e a sua toponímia (Edições Colibri, Câmara Municipal de Portalegre, 2003), encontramos uma extensa listagem de topónimos datados desde os princípios do século XVIII, quase todos de nítida paternidade medieval, porventura vindos da instalação e do desenvolvimento do burgo original. E a imensa maioria dessas designações assenta em temas religiosos, igrejas e santos, ou em lugares e mesteres, muito raramente surgindo nomes de pessoas comuns ou de acontecimentos e nunca aludindo a datas.

A parte final da Monarquia virá abalar esta primitiva simplicidade e o advento da República trará consigo um “terramoto” toponímico. O Estado Novo acrescentará um “tsunami” aos desequilíbrios em curso, fenómeno que a Revolução de Abril ainda mais sacudirá. Esta visão “catastrofista” não passa de uma metáfora. Ainda assim, é possível analisar em Portalegre alguns evidentes efeitos de todas estas alterações, muitas vezes derivadas de “climas” ou ideologias dominantes em cada um dos sucessivos regimes políticos. Houve fases em que de Norte a Sul do país se distribuíram e implantaram por ruas, praças e avenidas de tudo quanto era sítio listagens toponímicas que nada tinham a ver com as realidades, tradições ou interesses locais.

Como é evidente, a memória colectiva esquece ou confunde topónimos que perderam actualidade e significado, nomeadamente alguns relativos a datas, eventos ou personalidades. Noutros casos, a “modernização” não conseguiu apagar antigas e fortes designações.

Portalegre – o verso e o reverso

Em Portalegre temos bons e maus exemplos – A frase é de Manuel Isaac Correia e subscrevo-a sem a mínima hesitação. Provavelmente, os bons e os maus exemplos toponímicos não constituem uma exclusividade lagóia, pois devem verificar-se um pouco por toda a parte, mesmo sem atingir as raias do “escândalo” monfortense.

Os bons exemplos de oportunas e justas iniciativas toponímicas abundam em Portalegre, constituindo uma norma que enriquece o património público. Porém, há excepções chocantes e, destas, cito agora apenas duas, distintas no conteúdo e idênticas no disparate.

A primeira, em termos temporais, diz respeito à substituição da designação da Avenida Dr. Manuel Fernandes de Carvalho, que vinha de 1957, por Avenida Movimento das Forças Armadas. Em Outubro de 1974, sob intensa pressão popular, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Portalegre deliberou essa troca. Não está em causa a justeza da homenagem ao grupo de militares que assumiu a iniciativa libertadora da Pátria, mas ofende a injustiça cometida quanto à memória de um cidadão a quem a cidade muito deve e a diversos níveis de actuação, como professor, presidente da Junta Distrital e presidente da Câmara Municipal. À sua acção deve-se a criação do actual Internato de Santo António, instituição ainda hoje marcante, e um surto de assinalável progresso local, fácil de comprovar.

Sucessivos elencos autárquicos, desde então, mantêm em suspenso, pendente talvez até à eternidade, uma tão urgente como justa reparação alternativa desta flagrante injustiça, como se pode confirmar pela obra de Fernando Carita atrás citada.

Outro disparate toponímico local, porventura ainda mais gravoso, aconteceu já neste milénio, quando a autarquia decidiu abrilhantar as suas festas de 2012 com a actuante presença de Carlos do Carmo, recentemente falecido. Entre as diversas cerimónias organizadas contou-se a implantação de uma lápide junto à casa, na Fontedeira, onde nascera a sua mãe, a talentosa fadista Lucília do Carmo, e o “baptismo” de uma rua com o nome desta.

Ora sabe-se que a mudança de nome de uma rua, para além da putativa violência cometida para com alguma memória individual e/ou colectiva, representa considerável desconforto cívico para os moradores, pelas implicações pessoais, postais, fiscais e administrativas inerentes a essa alteração. Talvez motivados por esta “lógica” (!?) terão os autarcas procurado para o efeito uma artéria pouco habitada. Terá calhado a sorte (ou o azar…) à antiquíssima Travessa da Rua Nova, que tem tanto a ver com Lucília do Carmo como eu tenho a ver com o Império do Meio, na China. Acresce que a Travessa da Rua Nova representava o derradeiro vestígio toponímico e histórico do antigo bairro atribuído à comunidade ex-judaica dos cristãos-novos em Portalegre, depois da absurda transformação da vizinha Rua Nova em Rua João da Fonseca Achaiolli, num dos tais delírios ideológico-toponímicos locais, em 1906…

Não consigo acreditar que uma Comissão Municipal de Toponímia, minimamente independente, responsável e competente, pudesse avalizar tamanha aberração.

Toponimicamente me confesso…

Pertenci a uma anterior Comissão Municipal de Toponímia, entre 1998 e 2002, dela me tendo demitido por não pactuar com um episódio de alheia quebra de palavra e de carácter, de todo inaceitável.

Para além da participação no estudo, discussão e informação de propostas toponímicas provenientes da Câmara, que para isso oportunamente nos convocava, assumi três iniciativas pessoais, devidamente fundamentadas segundo as normas e os valores tacitamente aceites por todos os membros, relativas a personalidades desaparecidas há tempo bastante, com memória consolidada, merecido prestígio e justificada referência local, respeitando artérias sem designação anterior.

Uma delas, em 2011, consistiu na proposta, aprovada e concretizada, da atribuição do nome de Iria Gonçalves, mãe do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, ao arruamento que liga a Praça da República ao antigo Matadouro Municipal, com base no facto de, pelos finais do século XIV, a referida dama ter residido no Corro de Baixo, assim proporcionando a eventual discussão dos valores morais e patrióticos inerentes à época em questão, incluindo os familiares, relacionando-os com a memória histórica de Portalegre.

Em 1999 apresentara outra proposta, igualmente aprovada e concretizada, relativa à atribuição do nome do Capitão José Cândido Martinó a uma rua no novo Bairro de Santana. Assentei a proposta na rica e interveniente participação do homenageado na sociedade local, como maestro da banda militar do Regimento de Infantaria 22, expedicionário em França na I Grande Guerra, militar condecorado, professor de música, homem de cultura e autarca em Portalegre nos anos vinte e trinta do passado século. O volume biográfico que lancei nessa comemoração dos 50 anos da morte do meu avô materno confirma, assim o julgo, o inteiro e isento merecimento da iniciativa toponímica.

A terceira proposta teve percurso e destino bem diversos. Aconteceu em 2002, inserível na comemoração centrada na terra natal do homenageado, João de Azevedo Coutinho, em Alter do Chão.

Este herói nacional foi o militar, de longe, mais condecorado do historial pátrio. Costuma este título ser repetida e erradamente atribuído a Marcelino da Mata, recentemente falecido, galardoado com o grau de Cavaleiro da mais honrosa distinção portuguesa, a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Pois João de Azevedo Coutinho, reconhecido pelas Cortes como Benemérito da Pátria aos 25 anos, recebeu sucessivamente ao longo da sua gloriosa vida todos os graus da Ordem da Torre e Espada então atribuíveis, de Cavaleiro, Oficial, Comendador e Grande-Oficial à Grã-Cruz. E são quase incontáveis outras distinções que lhe foram concedidas, incluindo algumas estrangeiras. Em Portugal, acrescente-se, o reconhecimento brotou tanto da Monarquia como da República.

João de Azevedo Coutinho recebeu em Portalegre justas homenagens, tendo sido apoteoticamente aqui acolhido em Abril de 1891, conforme relato constante do Livro de Actas da CMP. Aliás, já no ano anterior, em Setembro de 1890, a Câmara Municipal da cidade deliberara que a antiga Rua da Carreira se passasse a denominar Rua d’Azevedo Coutinho, como “testemunho de muito apreço pelos serviços feitos à Pátria pelo digno português, bravo e simpático militar”, segundo a Acta de 11 de Setembro de 1890.

João de Azevedo Coutinho viria a casar na nossa cidade com a jovem portalegrense Maria Inês de Barahona Castel-Branco e residiria por longas temporadas no solar desta sua nova família, hoje sede do Arquivo Distrital.

A implantação da República colidiu frontalmente com os juramentos de fidelidade ao seu Rei, pelo que, rebelando-se em armas contra o novo regime, João Coutinho seria demitido da Armada em Maio de 1911. Logo a seguir, pelas diversas localidades onde constituíra toponímica, foi o seu nome apagado. Assim aconteceu, tanto em Alter do Chão como em Portalegre. Aqui, por proposta do cidadão Adelino do Carmo Brito, o nome de Azevedo Coutinho foi substituído por 19 de Junho, data que hoje rigorosamente nada diz à nossa comunidade.

Não parou a actividade de João de Azevedo Coutinho. Após exílio no estrangeiro, em Novembro de 1925 foi eleito senador monárquico pelo distrito de Portalegre, por uma significativa votação popular, confirmativa da permanência de uma grata memória colectiva. Embora tardiamente, em 11 de Março de 1942, a Pátria acabou por corrigir o anátema lançado sobre o herói e reintegrou-o na Armada, conferindo-lhe a título honorário a patente de vice-almirante.

Imediatamente a seguir, a imprensa local portalegrense “exigiu” com veemência uma urgente reparação toponímica, como se pode ler no Correio de Portalegre de 18 de Março de 1942, repetindo-se tal apelo em O Distrito de Portalegre de 23 de Dezembro de 1944, a quando da morte do distinto e heróico militar. Em vão…

Entretanto Alter do Chão, com algum atraso, em 20 de Abril de 1967, repôs solenemente a designação toponímica relativa ao seu ilustre filho.

Portalegre manteve-se e continua a manter-se fiel à sua habitual e vazia inconstância, tradicionalmente evidenciada em quase todos os domínios da vida comunitária. E nada fez…

Chover no molhado ou Bater em mortos?

A proposta de 2002, liminarmente reprovada após um conturbado processo que ainda me é doloroso recordar, ficou no mesmo “limbo” onde repousa o caso relativo a Manuel Fernandes de Carvalho. Assim o confirma Fernando Carita na obra já diversas vezes citada. Nestes quase vinte últimos anos, os autarcas portalegrenses ainda não encontraram dignidade bastante nem coragem (ou tempo!?) para enfrentar esta “maldição” toponímica que parece amedrontá-los…

Não foi por carência de incitamentos da minha parte. O último aconteceu em 2017.

Passou em 6 de Agosto desse ano, um Domingo, mais uma magnífica oportunidade para cumprir um dever comunitário de memória local, nos precisos 125 anos do casamento do alterense João de Azevedo Coutinho com a portalegrense Maria Inês de Barahona Castel-Branco. Atempadamente, ofereci por escrito à senhora presidente da autarquia a sugestão, devidamente sustentada, de uma comemoração alusiva onde tivesse lugar a implantação de uma placa toponímica na qual, sob a actual designação de Rua 19 de Junho, se inscrevesse Antiga Rua da Carreira e Antiga Rua de Azevedo Coutinho, acrescentando às cerimónias a mais do que provável participação da Marinha, sempre empenhada na dignificação dos seus heróis, do que tenho concludentes e repetidas provas pessoais. Apesar do meu explícito apelo a uma resposta, obtive-a na forma de um absoluto silêncio.

Naturalmente, para além de a lamentar, nada pude contrapor à soberana decisão de ter sido desprezada mais aquela oportunidade.

O mais interessante de todo este caso consiste na permanência, a todo o momento comprovável, da designação toponímica da Rua de Azevedo Coutinho. Basta que se experimente perguntar, via Internet, pela localização das famosas janelas manuelinas do palácio dos condes de Melo, em Portalegre. Na própria Direcção-Geral do Património Cultural, como em muitas outras fontes credíveis, a resposta é uniforme e explícita: Rua de Azevedo Coutinho! Desta espécie de fuga toponímica para a verdade, apenas Portalegre se exclui…

Um nevoeiro sebastianista parece obscurecer a visão de uns quantos lagóias, ditos responsáveis, porém incapazes de distinguir a realidade, perdidos algures entre Alcácer Quibir e a Lixosa.

Portalegre é terra deliberadamente sem memória ou, talvez, dotada de especial memória selectiva, que ganha particular evidência nos domínios da toponímia.

Finalizando, ainda me atrevo a acrescentar algo aos factos sumariamente atrás relatados. Poderia para tanto arrolar um vasto conjunto de personalidades da maior relevância, porque aqui desenvolveram intervenções consistentes e inolvidáveis, como nomes dignos de perenidade toponímica.

Resumo essa lista ao essencial e prioritário: Padre José Dias Heitor Patrão, Padre (depois Bispo) António Baltasar Marcelino, Dr. António Correia Teixeira, Dr. Ernesto de Oliveira e Dr. João Transmontano Miguéns.

Concluo: em vez de deambulações por alheios pretextos, vulgares e repetitivos, quando acontecerá uma oportunidade para se aproveitar e valorizar em Portalegre a função pedagógica da toponímia, até agora praticamente desprezada?

Não querendo passar por profeta, que jamais serei, manifesto mais uma vez o convencimento pessoal de que a nossa terra será um dia liderada por cidadãos dotados de cultura, inteligência, sentimento e respeito pela memória – a autêntica -, capazes de corrigir as injustas e prolongadas ofensas para com os mortos ilustres e dignos de veneração, inestimável património colectivo da comunidade local.

Artigo publicado na edição 709 do Jornal Alto Alentejo de 17 de Fevereiro de 2021

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