Associação de Produtores Agrícolas de Precisão contesta projecto de regadio da Barragem do Pisão por «não servir a região»

A Barragem do Pisão é uma aspiração e reivindicação histórica das populações do Alto Alentejo, com mais de meio século. E após tantos anos de luta por este projecto, quando já muitos não acreditavam que seria possível a sua construção, surgiu uma nova esperança, firmada em 2021 pelo Governo que assumiu este investimento, que ascende aos 171 milhões de euros, como estrutural para o desenvolvimento deste território.

Desde então, e numa demonstração de união dos 15 concelhos do distrito de Portalegre, que elegeram este investimento como prioritário e essencial para o futuro desta região, a Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo assumiu-se como entidade gestora da criação, execução e implementação do Empreendimento de Aproveitamento Hidráulico de Fins Múltiplos do Crato, commumente designado por Barragem do Pisão, e o financiamento da obra no valor de 120 milhões ficou assegurado pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Recentemente, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, deslocou-se ao concelho do Crato para a cerimónia oficial de entrega, por parte da Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural à CIMAA, do projecto de Execução de Infraestrutura de Regadio do Aproveitamento Hidráulico de Fins Múltiplos do Crato, o qual define as futuras áreas de regadio, um aspecto determinante na disponibilidade hídrica para a agricultura na região do Alto Alentejo, tendo revelado que o sistema de regadio projectado vai permitir «regar cerca de 5.500 hectares», num investimento de cerca de «47 milhões de euros».

A área de regadio anunciada pela governante difere bastante do que estava previsto, tendo sido por diversas vezes afirmado que o sistema de regadio iria abranger mais de 11 mil hectares, o que iria potenciar e desenvolver a agricultura da região, verificando-se assim uma redução para metade da área, sendo o valor de investimento praticamente o mesmo.

Esta alteração ao perímetro de rega mereceu a contestação da APAP – Associação de Produtores Agrícolas de Precisão, que entregou à ministra, bem como ao presidente da CIMAA e ao presidente da Câmara do Crato, uma carta com a qual pretende alertar, mas também apelar à alteração, de um conjunto de questões que, na opinião da equipa técnica da associação, devem ser «corrigidas», pois defendem que o sistema de regadio «conforme está projetado não é um projecto que sirva a região», justificando que, mantendo-se o que está previsto, «os agricultores do Alto Alentejo vão utilizar, na melhor das hipóteses, menos de 9% do volume de água armazenado na albufeira do Pisão».

«Vamos ter uma baixa expressão de regantes efectivos»

Em declarações exclusivas ao nosso jornal, a equipa técnica da APAP, José Maria Falcão, Gonçalo Cané e Ricardo Leonardo, recorda que, desde 2017, a associação procurou ser um dos principais players no “pontapé de saída” deste projecto, tendo desenvolvido vários esforços nesse sentido, e, em conjunto com a AADP – Associação de Agricultores do Distrito de Portalegre, criou em Março de 2019 a Associação de Beneficiários da Barragem do Pisão.

Tendo no seu corpo técnico recursos com experiência neste tipo de obra, nomeadamente na obra de Alqueva e na obra de Veiros, bem como o conhecimento profundo de toda a área de implementação do projecto da Barragem do Pisão, a APAP «sempre se disponibilizou para ajudar no estudo zonal de implantação do futuro regadio, pois somos da região, conhecemos as explorações dos futuros regantes, temos o conhecimento técnico e a experiência neste tipo de obra», recorda, lamentando por não lhes ter sido dado a oportunidade de «colaborar de modo mais activo», pois com o seu conhecimento profundo das necessidades e ootencialidades agrícolas da região, bem como a experiência de outros projectos semelhantes, já em Junho de 2019, no dia em que a Barragem do Pisão foi apresentada pelo Governo no Crato, «tínhamos identificado todos os erros que não se podiam cometer no desenrolar deste projecto, mas, infelizmente, alguns acabaram por ser cometidos».

A equipa técnica da APAP: José Maria Falcão, Gonçalo Cané e Ricardo Leonardo

José Maria Falcão contesta a posição da CIMAA de «nunca ter criado um grupo de trabalho de apoio que incluísse as associações, os técnicos agrícolas locais, os agricultores e as academias», o qual «teria o conhecimento e a experiência que permitiria ajudar, essencialmente na vertente agrícola da responsabilidade do Ministério da Agricultura, a evitar erros já cometidos muitas vezes noutros empreendimentos», alega, defendendo que isso permitiria, inclusive, «ajudar a unir as necessidades dos agricultores da região face ao regadio a implementar, a aproximação entre o futuro empreiteiro e o agricultor regante, pois a partir do momento em que se se vão implementar no terreno condutas, bocas de rega, cabos eléctricos, estradas, etc… só uma simbiose de ideias permite que a obra não saia mais caro do que foi do ponto de vista macro inicialmente projectada».

Na carta endereçada à ministra, a APAP aborda o facto de não terem sido incluídos no projecto alguns reservatórios de regularização que estavam previstos, os quais permitiriam, através de estações elevatórias «regar mais área sem o factor limitante da cota do terreno», sendo que «no projecto agora aprovado a selecção dos terrenos a irrigar é feita, naturalmente, pela cota que limita o abastecimento da rede gravítica, e não pela a aptidão da qualidade dos solos», constatando que «existem alguns agricultores que hoje regam por reservas próprias, fruto de obras por eles feitas, ou seja, temos disponível uma enorme quantidade de reservatórios que podiam e deviam ser usados como reservatórios de regularização do próprio perímetro, mas que não o são. A utilização desses reservatórios iria, naturalmente, garantir a água aos seus proprietários e potenciar mais áreas de regadio de solos de elevada qualidade, contribuindo para a sustentabilidade e gestão do mesmo», esclarece.

Segundo a APAP, os agricultores que hoje têm reservas próprias vão ser contemplados dentro do perímetro de rega, mas «não são os regantes fundamentais nem prioritários pois apenas vão utilizar as reservas do Pisão nos anos em que a seca os obrigar a usar esse recurso, ou seja, são beneficiários esporádicos e como todos sabemos, uma obra desta só se paga com regantes efectivos que necessitem das reservas da Barragem do Pisão todos os anos», dando como exemplo que no concelho de Fronteira «estes regantes esporádicos representam quase a totalidade dos regantes», e no concelho de Alter «também representam uma grande parte dos regantes», pelo que, concluem os técnicos da associação, «vamos ter uma baixa expressão de regantes efectivos que utilizem as reservas da Barragem do Pisão todos os anos e na sua maior parte parcelas pequenas», fundamentando ainda que «nestas condições esta obra nunca se paga e é totalmente inviável do ponto de vista económico» e que «os agricultores do Alto Alentejo vão utilizar, na melhor das hipóteses, menos de 9% do volume de água armazenado na albufeira do Pisão, e o resto da água disponível para regadio vai seguir para o Vale do Sorraia. Mais uma vez o Alto Alentejo vai fazer, essencialmente, reserva para o Vale do Sorraia, com as albufeiras do Pisão, Maranhão e Montargil», contestam.

Perante isto, José Maria Falcão refere que «ao diminuir a área do perímetro de regra, abrangendo na maioria regantes que já têm os seus investimentos próprios, possivelmente cerca de 60% dos agricultores só regam em anos de seca, não haverá um aumento no número de regantes da região», pelo que «não conseguimos perceber como, mesmo assim, se mantém quase o mesmo valor de investimento», e afirma que «o que está projectado defrauda o objectivo desta barragem, que será feita para consumo humano, em primeiro lugar, mas também para sustentar uma região que está em despovoamento repentino e acelerado».

«Se vamos regar a mesma área que já regamos, só que com mais água que é utilizada apenas nos anos secos, quando isso não se verifica a água vai-se embora, não fica na região, e deixamos de ter a oportunidade de se poderem instalar mais pequenos e médios agricultores que poderiam criar centenas de núcleos de pequenos regadios», esclarece.

APAP contesta limitações da IBA

Embora concorde que o projecto de regadio também tenha blocos gravíticos, José Maria Falcão condena que não se esteja a aproveitar o investimento, que esta acoplado, em painéis solares para fazer chegar a água a mais locais, pois «vamos ter energia com uma pegada de carbono nula, que deveríamos utilizar para altear a água, como faz o Alqueva, para poder atingir outras zonas de regadio, manchas de solo muito boas, e que não conseguimos lá chegar sendo apenas um sistema gravítico», esclarece, acrescentando que, inclusive, poderia ser dada oportunidade aos agricultores de «utilizarem os seus sistemas, fazendo os investimentos necessários, para fazer chegar a água a essas zonas, aproveitando a água que será acumulada na barragem».

Entendendo que «há muitas soluções que poderiam ter sido criadas para que a barragem, efectivamente, sirva para desenvolver a agricultura na região», o especialista assume que «se for feito o que está projectado, serão gastos milhões de euros numa obra que não vai alavancar nada, porque para isso precisamos de pulverizar o regadio, e só assim conseguimos ter mais desenvolvimento», defende.

Gonçalo Cané refere, alguma ironia, que «os perímetros do concelho de Alter do Chão e Fronteira, sendo uma obra de regadio somente gravítica, são semelhantes à construção, nos dias de hoje, de um fontanário», e acredita que um dos principais erros cometidos neste processo resulta da falta do facto de «nem a CIMAA nem as autarquias terem recursos com capacidade técnica especializada para assumir uma obra tão específica como esta», e que, como tal, «tinham a obrigação de recorrer a serviços técnicos especializados que existem na região, os quais, ao longo de todo o processo. se disponibilizaram, de forma voluntária, para contribuir positivamente e com o espirítico crítico que se exigia».

Segundo o técnico, essa falta de capacidade técnica especializada foi prejudicial, inclusive, para defender questões como a exclusão de quase um milhar de hectares, «dos melhores solos do concelho de Alter», da área a irrigar, com a justificação de que «estão agora inseridos numa IBA (Important Bird Area), que se existia não tinha sentido existir», defende.

«Na IBA agora identificada ou definida, existe, desde 2005 regadios particulares e com pareceres favoráveis por parte do Ministério do Ambiente desde então. Desde essa data que nessas áreas são feitas várias culturas, nomeadamente girassol, milho, luzerna, cereais de outono/inverno e consociações forrageiras, regadas por aspersão, nomeadamente center pivot», explica, denotando que «estes últimos anos deste tipo de cultivo irrigado, são responsáveis pela manutenção de várias espécies, que se vão mantendo, ou até vão surgindo de novo, pelo facto de existir culturas que as alimentam. Na eventualidade, de estas áreas deixarem de continuar a produzir, naturalmente as espécies desaparecem».

Esclarecendo ainda que a IBA impossibilita também a passagem de uma das condutas que iria irrigar vários campos com elevada aptidão para o cultivo, apesar de «na realidade já existirem extensas condutas que a atravessam desde 2009, sendo que em momento algum esse problema se levantou num passado recente», Gonçalo Cané lamenta que não tenha havido por parte da CIMAA «qualquer tentativa de contrapor estas decisões, mesmo tendo recebido várias exposições que as contrapunham, parte de alguns agricultores».

«Uma obra pública de tantos milhões de euros não se faz assim»

Assumindo que aquilo que pretende, essencialmente, é «ajudar a fazer um melhor Pisão, que sirva os interesses da região», a equipa técnica da APAP diz não compreender que tenham sido feitas reuniões com os regantes do Vale do Sorraia, que estão a jusante da albufeira e do perímetro de rega e «não reuniu, uma única vez, com os regantes, agricultores e técnicos da região», e lamenta que «este projecto tenha crescido de forma muito genérica e pouco discutida, com um natural reduzido espírito critico por parte das autarquias e da CIMAA, o que no fundo é recorrente neste tipo de obras, pois a estes players institucionais não podemos exigir conhecimentos e qualificações para estas obras tão especificas», motivo pelo qual defende que «a sociedade civil, a academia e as organizações da região podem e devem contribuir para, juntamente com as autarquias e a CIMAA, obterem um projecto mais equilibrado, com uma visão mais rural e socioeconómica, e nunca só dependentes das visões de equipas de projecto sediadas fora da região e com dificuldades naturais de sensibilidade para problemas regionais».

Convicta de que «uma obra pública de tantos milhões de euros não se faz assim», a APAP espera, e acredita, que «ainda se possa ir a tempo de corrigir parte do que, na nossa visão integrada do perímetro de rega, poderia ser feito melhor, aproveitando de maneira mais correcta os solos agrícolas da região e distribuindo água a mais regantes. Quanto mais regantes pequenos e médios tivermos, em áreas com dimensão mínima com racional económico, mais sustentamos um mundo rural que se está a desertificar quase irremediavelmente, como assim o mostra os censos da região», fundamenta.

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