Em termos cristãos e eclesiais, qualquer dinâmica pastoral ou mensagem pastoral digna deste nome tem de ter sempre como trampolim a Palavra de Deus recolhida na Escritura Santa, que traz até nós o testemunho rendilhado da mão de Deus na nossa vida, nas nossas mãos, no nosso rosto, no nosso coração, no nosso sangue, na nossa cultura, na nossa linguagem, no nosso quotidiano.
É assim que chega até nós a atestação de que «Deus é amor» (1 João 4,8 e 16) e «nos amou primeiro» (1 João 4,19). Considerando o mundo cultural de Platão e Aristóteles, dizer que Deus ama é entrar no domínio do absurdo, pois, segundo este tipo de pensamento, Deus pode ser amado, mas não amar. E dizer agora que Deus ama primeiro, é afirmar que Deus ama gratuitamente, com um amor gratuito e descensional, o que significa ainda que a razão do amor de Deus reside em Deus, e não naqueles sobre quem recai o seu amor. Entenda-se semelhante paradoxo: o infinito caudal do amor que há em Deus, e de Deus brota, é sem retorno, não existe em ordem à sua autorrealização ou autossatisfação mediante a escolha dos destinatários desse amor entre os mais belos, os mais ricos, os mais amáveis (que é o horizonte em que o nosso mundo se movimenta), mas procura a felicidade de todos, sobretudo dos mais pobres, necessitados e fracos, e alarga-se aos estrangeiros e inimigos.
Se é assim, se «Deus é amor» (1 João 4,8 e 16), e «nos amou primeiro» (1 João 4,19), a toada do amor que há em nós «vem de Deus» (1 João 4,7), e «nós amamos, porque Deus nos amou primeiro» (1 João 4,19). Então, o amor que está aqui, o amor que está aí, o amor que está em mim, o amor que está em ti, o amor que está em nós, «vem de Deus» (1 João 4,7), e «quem ama nasceu de Deus» (1 João 4,7) e «de Deus foi gerado» (João 1,13). Deus amou-nos primeiro, ama-nos e continua a amar-nos sempre primeiro com amor-perfeito, isto é, amor preveniente, concomitante, fiel, consequente, permanente. Ama-nos a nós, que estamos aqui, e foi assim que nós começámos a amar. Se não tivéssemos sido amados primeiro, e não tivéssemos recebido o testemunho do amor, não teríamos começado a amar, e nem sequer estaríamos aqui, porque «quem não ama, permanece na morte» (1 João 3,14). Portanto, quem não ama vai em sentido contrário, ou em sentido nenhum, sem sentido, atraído, fascinado e seduzido pela morte (cf. Sabedoria 1,16; 15,6), escolhendo a morte em detrimento da vida (cf. Deuteronómio 30,19). Significa isto que a morte a que aqui se refere a Escritura Santa não é apenas o termo da vida biológica ou psicobiológica, mas aquilo que, desde o começo, impede de nascer para a vida verdadeira e para o amor. E o que é que te impede de nascer para a vida verdadeira e para o amor? É seguramente o que te impede de amar, de sair de ti, da tua prisão interior, cela interior, autossuficiência, autorreferência, tu, encadeado pelas leis da natureza, ao mesmo tempo dono e escravo de ti mesmo, pura idolatria, opressão maior do que a do Egito, que também impedia de nascer (Êxodo 1,16.22).
A tartaruga acaba de deixar o seu esconderijo para um passeio noturno. O sapo vê-a sair de casa àquela hora, e adverte-a: «A esta hora não é muito aconselhável sair, tartaruga». Mas a tartaruga continua, e, arriscando um passo mais longo, vê-se virada de patas para o ar, sobre a sua própria couraça. O sapo exclama: «Eu bem te avisei, tartaruga; é uma imprudência sair a esta hora; morrerás aí!». «Bem sei», respondeu a tartaruga com um olhar entre a malícia e a delícia; «Bem sei, mas é a primeira vez que estou a ver o céu estrelado!». A tartaruga ensina que não nos podemos contentar em viver mais ou menos tranquilamente com a cabeça enterrada na areia do céu ou da terra.
Sair de casa como a tartaruga, extasiar-se e desviar-se do caminho como Moisés para ver a visão grande e nova daquela sarça que ardia, mas não se consumia (Êxodo 3,2-3), ouvir a voz daquela chama que chama (Êxodo 3,4)! Aí está a maravilha que nos excede, que nos acende os olhos e o coração. Por isso, cantamos; por isso, contamos; por isso, repetimos e trauteamos, não por monotonia, nem por mera pedagogia, mas porque a maravilha reclama a poesia. Bem sabemos, de resto, que a humanidade não está destinada a morrer por falta de conhecimento, mas por falta de assombro e de maravilha. O mundo que atravessamos parece todo escuro, desencantado, sem Deus e sem profetas, sem amor, sem pais nem mães, filhos e irmãos, sem namorados. Só com armas e soldados!
É preciso urgentemente trazer de volta a Palavra de Deus: «Tu és bela, minha amada,/ terrível como um exército em ordem de batalha» (Cântico dos Cânticos 6,4), que não nos deixa na presença de um amor banal, de plástico, de bolso, enlatado, mas de um amor que faz estremecer e implica o risco de morrer. O amor verdadeiro é agónico. Implica luta, porque implica decisões a todo o momento. Quando o amor não é agónico, então é egoísta. E, sintomaticamente, no mundo bíblico, a nascente do mal não reside na paixão, no coração que bate forte, mas no coração duro, empedernido, empedrado, esclerosado, um «coração de pedra», oxímoro vertiginoso que o profeta Ezequiel usou para classificar o coração empedernido e embotado de Israel (Ezequiel 36,26).
Habitados por um coração de pedra! Alles in Ordnung [«tudo em ordem»] pode dizer-se apenas das lápides no cemitério! Se o matrimónio é indissolúvel, não é porque a lei de Deus proíba de o romper, mas porque o amor é fiel eternamente. Amar não é só estar apaixonado. Estar apaixonado não significa necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, tal mandamento seria um absurdo, pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone. Amar é uma sucessão de atos em cadeia: uma guerra, portanto. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) podem ter a mesma etimologia. Paradoxo do amor, que é uma luta, a luta do amor, do amor novo, que não é contra ninguém, mas a favor de todos: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lucas 9,24). Aí está o verdadeiro ícone do amor, Jesus Cristo, que não se salvou a si mesmo para me salvar a mim e a ti.
Atravessamos hoje uma cultura solipsista e narcisista, que traz consigo, como obsessão dominante, viver cada um no seu naco de tempo e para si mesmo, descurando quer as gerações precedentes quer as seguintes, verificando-se assim uma acentuada perda de sentido de integração numa sucessão de gerações, numa família, numa comunidade, numa Igreja, valorizando-se em vez disso cada vez mais o sacrossanto direito de cada um à sua própria realização pessoal, sem implicar compromissos. Na verdade, vendo bem, estamos rodeados de homens e mulheres que se recusam a tornar-se adultos, e, por isso, negligenciam a tarefa mais importante de um adulto, que é preparar a nova geração para poder assumir o seu lugar no mundo.
Sede felizes, jovens enamorados! Acolhei o amor de Deus, e, no meio de tantas guerras, empenhai-vos vós na guerra do amor!
COMISSÃO EPISCOPAL DO LAICADO E FAMÍLIA
14 de fevereiro de 2024