Hoje é um dia, particularmente, feliz, por estarmos aqui reunidos e podermos, de viva voz e publicamente, enaltecer as virtudes morais, sociais e humanitárias de um filho desta terra: o senhor António Joaquim Eustáquio.
António Eustáquio, nasceu ali na Rua da Carreira, numa casa, pequenina, de que hoje resta, apenas o local. Uma casa pequenina, como tantas que conheci na “Vila” (em Nisa) e que albergavam famílias com dez, doze, catorze e mais pessoas. Eram casas pequeninas, com dois ou três compartimentos acanhados e onde, tantas vezes, ainda cabia o macho, o burrito, a cabrinha e o porco. Eram casas pequeninas, cheias de gente (o concelho, desculpem-me, chegou a ter nessas décadas de 40, 50 e 60, do século passado, quase 20 mil habitantes), cheias de miséria, mas transbordantes de amor, de carinho e afectos. A história da sardinha, dividida por não sei quantos, não é, não foi – infelizmente – uma fábula, mas sim uma realidade nua e crua, sentida por muitas famílias. Relembro o passado, para que possam perceber que, nascido no seio de uma família de dez irmãos, a António Joaquim Eustáquio não restava outra alternativa senão fazer-se à vida, bem cedo, na idade de todos os sonhos e brincadeiras. O seu tempo de menino foi passado a trabalhar no campo, nos “barros” do Cano e do Ervedal, até ir para a vida militar. E, pela vida militar se deixou ficar até à ao posto de sargento-ajudante e a passagem à situação de reforma, com as idas e vindas do Ultramar, nos tempos de brasa da guerra colonial, de permeio. Aqui começa, verdadeiramente, a “segunda vida” de António Eustáquio. Não esqueceu a casa na Rua da Carreira, a família numerosa, as dificuldades que enfrentou e no remanso do lar, encaminhados os filhos, engendrou uma forma de ser útil à sociedade e ao mesmo tempo de combater o ócio que, não raras vezes, é o caminho mais curto e directo para o vício.
Há uns bons anos, chamei-lhe, numa entrevista, “alpalhoeiro de sangue na guelra”. O título, a meu ver, sugestivo, pretendia associar a sua origem, que nunca renegou e de que conserva os traços identitários inconfundíveis, como o sotaque e a vontade, granítica, de remover montanhas, com o espírito de iniciativa, pouco comum num jovem com mais de setenta anos. O sangue, ou, mais propriamente, a falta dele, fez despertar em António Eustáquio, um dador de muitos anos, o desejo, irreprimível, de constituir uma Associação, a nível distrital, que dinamizasse, de forma organizada, não só as recolhas benévolas de sangue, mas, sobretudo, pudesse agir num trabalho de sensibilização para cativar novos dadores e fazer ruir alguns dos mitos e tabús que ainda imperavam sobre as dádivas de sangue. Nascia, assim, em 1990, e por acção directa, decidida e voluntária de António Joaquim Eustáquio, a Associação de Dadores Benévolos de Sangue do Distrito de Portalegre. Ao longo destes 15 anos, a Associação tem desenvolvido um trabalho notável; percorreu um caminho não isento de escolhos e afirmou-se, ao serviço da comunidade, principalmente, pela força, vontade e determinação deste homem. Fazendo recolhas, regularmente, em 12 dos 15 concelhos que integram o distrito (as excepções são Campo Maior, Elvas e Gavião) a Associação de Dadores de Sangue do Distrito de Portalegre, recolheu neste espaço de tempo e sem contar com as dádivas feitas, directamente, nos serviços próprios do Hospital Distrital, cerca de dez mil dádivas benévolas de sangue, contribuindo para a satisfação das necessidades do Hospital Dr. José Maria Grande e dando um contributo relevante para suprir carências a nível de outras unidades de saúde da região e do país. A estas acções de recolha de sangue, programadas e descentralizadas por todos os concelhos ao longo do ano, e realizadas por uma equipa especializada, acresce o trabalho que vem sendo, ultimamente, desenvolvido na sensibilização para as dádivas de medula óssea, com a constituição de um banco de dados de possíveis dadores. Toda esta acção, pioneira, humanitária e humanista, de que beneficia toda a comunidade, não teria sido possível sem a dedicação, sem a vontade inabalável, e sem o empenhamento cívico deste cidadão da nossa terra. Apesar de não possuir uma grande preparação técnica na área da saúde, o programa que António Eustáquio mantém, desde há anos, às quartas-feiras na Rádio Portalegre – que julgamos, a este nível, pioneiro – não deixa de constituir uma original forma de comunicação, não só com o universo dos dadores de sangue, mas com o comum dos cidadãos, pela espontaneidade, pelos exemplos, pela força apelativa das mensagens. Muitos dadores, estou certo, foram “ganhos” desta forma. Outro aspecto saliente do programa é a “desmontagem”, a clarificação, o esclarecimento de dúvidas, que Eustáquio faz de um modo muito directo, com exemplos práticos e sem artifícios de linguagem, supostamente técnica ou intelectual. (Abro aqui um parêntesis para convidar/sugerir às entidades responsáveis na Saúde para seguirem, também, idêntico caminho.).Para além de fundador e presidente da Associação de Dadores Benévolos de Sangue do Distrito de Portalegre, António Joaquim Eustáquio pôs de pé e dirigiu, até à passada segunda-feira, a delegação distrital da Liga dos Combatentes. Também aqui o seu trabalho foi bem visível, empenhado e fez ressurgir, com benefícios para todos os ex-combatentes, uma associação quase moribunda. O levantamento feito dos talhões dos ex-combatentes nos cemitérios do distrito; o arranjo, embelezamento e dignificação destes espaços, em colaboração com as Câmaras Municipais, como aquele que foi feito em Nisa; a organização das comemorações do Dia dos Combatentes e a representação e defesa dos interesses dos ex-militares perante as instituições governamentais, têm sido possíveis graças à organização e combatividade do Núcleo. Mas é, sobretudo, através do trabalho desenvolvido à frente e com a Associação de Dadores, que queremos assinalar o mérito exemplar deste cidadão do concelho, do distrito, da região e do país, porque os benefícios resultantes das dádivas de sangue, não conhecem fronteiras nem extractos sociais: são de todos, de quem, voluntariamente, dá e de quem, no infortúnio da doença, recebe. O labor altamente meritório da Associação de Dadores, tendo à frente e principal dinamizador, António Joaquim Eustáquio, permitiu suprir carências do preciso líquido e contribuir como poderoso lenitivo para atenuar a dor física e psicológica de muitos doentes e das suas famílias. A homenagem que aqui lhe prestamos, mais não é do que o reconhecimento público e devido, a um cidadão que recusou o conforto da situação de reforma e se empenhou, de forma voluntária, decidida e abnegada na criação e desenvolvimento de uma associação, dirigida para proporcionar ao seu semelhante um pouco mais de esperança e, quantas vezes, um novo sentido para a vida. Em vez de se limitar aos bancos do jardim, a “matar o tempo morto” que antecede a morte, Eustáquio preferiu transformar a experiência de vida acumulada, numa causa social ao serviço do seu semelhante, mostrando-nos que ainda há exemplos, despojados, que ajudam a acreditar que é possível um mundo melhor. António Eustáquio, com a força da sua determinação, do seu carisma e da sua entrega, merece que lhe tributemos, publicamente, o mais sincero e respeitoso agradecimento. Obrigado, António Eustáquio!”
Discurso de Mário Mendes, director do “Jornal de Nisa”, proferido na Homenagem realizada a 12/11/2005