Ana Maria Meira, a “enfermeira do sangue” aposenta-se após 44 anos de serviço

É um adeus comovido aos seus doentes, dadores e à profissão que exerceu durante 44 anos. Aos 70 anos, Ana Maria Meira, a eterna "enfermeira do sangue", despiu a bata que durante anos envergou com total entrega e dedicação, colocando um ponto final na sua carreira enquanto profissional de saúde. Para trás ficam as memórias, as histórias e a nostalgia da menina que no início «não podia ver pinga de sangue» e que já mulher fez da dádiva de sangue uma das suas bandeiras.

Cara assídua e conhecida do Hospital de Portalegre, Ana Maria Meira notabilizou-se pelo contributo e dedicação que deu durante 36 anos à causa do sangue, tanto no Banco de Sangue com na colaboração que manteve com a Associação de Dadores Benévolos de Sangue. Nascida, criada, baptizada e casada em Portalegre conta com uma carreira de 44 anos em enfermagem, a que se somam mais três como secretária. Foi uma das pioneiras do Hospital Doutor José Maria Grande, depois de ter passado pelo Hospital da Misericórdia.

Foi no Banco de Sangue, na última semana de serviço, que encontrámos Ana Maria Meira. Logo pela manhã e com o corrupio habitual, a enfermeira, de fala rápida e sempre com um sorriso no rosto, deixa a rotina habitual e sentada à secretária faz uma verdadeira viagem pelo tempo.

A sua carreira profissional iniciou-se na juventude depois de acabar o curso na Escola Industrial, pelo meio arranjou um namorico, casou e foi para Luanda levando apenas uma carta de recomendação que lhe viria a ser útil para ocupar o cargo de secretária da direcção da Escola Comercial Vicente Ferreira, em Luanda. Ali permaneceu durante três anos, mas foi a maternidade que lhe alterou o rumo da vida. «O meu filho tinha uma doença de pele e não podia ficar em Angola, por isso, e porque não queria perder o amor dele, vim para Portalegre e cá fiquei», refere.

Pouco depois um anúncio do jornal “O Distrito de Portalegre”, onde o seu pai exercia a função de tipógrafo, a dar conta da abertura do curso de enfermagem, viria a abrir-lhe os horizontes profissionais. «Disse logo que queria ir, o meu pai incentivou-me, mas a minha mãe não achou muita graça». Ainda assim «fui lá, inscrevi-me e dissera-me que eram precisos 30 alunos para o curso abrir», o que viria a acontecer pouco tempo depois. Com um curso novo e devido à falta de pessoal qualificado depressa os responsáveis pelos cuidados de saúde começaram a recrutar pessoal da escola. «Começámos a ficar entusiasmadas com a ideia de ir trabalhar. Todos quiseram ir para a suas terras, mas eu quis ficar em Portalegre e fui logo entregar o papel para não ficar sem vaga», conta Ana Maria Meira que antes de se fixar na sua terra natal passou pelo Hospital de Beja. «Vim para Portalegre dois dias depois do 25 de Abril e fui colocada no Banco de Urgências do Hospital da Misericórdia». Foi ali que aprendeu a suturar, a desinfectar e a colocar gesso, cuidados hoje da responsabilidade dos médicos, mas que naquela altura «tinham de ser os enfermeiros a fazer porque os médicos estavam em casa. Nós é que ligávamos quando os feridos chegavam às urgências», recorda.

O novo Hospital

Ana Maria Meira é uma das pioneiras do Hospital de Portalegre e ao nosso jornal recorda o entusiamo vivido pela população e pelos profissionais de saúde aquando da sua abertura. As pessoas ansiavam pela abertura do novo hospital» e recorda as noites e dias que ali passou com a família a abrir caixotes e a fazer limpezas. «Foi um desenrolar muito familiar e muito interessante porque ajudámos o Hospital e, ao mesmo tempo, convivíamos uns com os outros e éramos uma família».

Já com o Hospital aberto e novos médicos vindos de Lisboa, a enfermeira é convidada para fazer parte da equipa do serviço de cirurgia, ainda não tenha ficado entusiasmada. «Era enfermeira de cabeceira, mas eu não me sentia realizada porque gostava muito da rotina do Banco de Urgência», refere assumindo que «a função de enfermeira de cabeceira era mais rotineira e no Banco de Urgência era mais o aspecto da surpresa, o que ia surgir, tínhamos de fazer tudo desde o diagnóstico até à cura», conta.

Pouco tempo depois, Ana Maria Meira é colocada, a seu pedido, no Banco de Urgência. Após uma ano e meio de muitas horas sem dormir e uma rotina «muito activa e stressante», a enfermeira sofre um AVC e é obrigada abrandar o ritmo.

A “enfermeira do sangue”

É nesta altura que Ana Maria Meira é colocada no Banco de Sangue, um serviço mais calmo e que necessitava de um profissional. Ali esteve durante 36 anos até hoje e garante que «foi um serviço que me deu muito gozo e totalmente diferente» do que tinha feito até então. «É totalmente diferente lidar com pessoas que estão saudáveis e com doentes. O nosso dador vem consciente, de livre e espontânea vontade, vem dar o melhor que tem na vida, com o objectivo de ajudar alguém a viver», refere a enfermeira.

Foi neste serviço que Ana Maria Meira ganhou ainda mais notoriedade principalmente junto dos dadores, tanto dos que ali deslocam há vários anos como dos que encontrou por todo o distrito durante a brigadas da ADBSP em que participou. «Todos o meus dadores e doentes foram excepcionais para mim e tenho muitas histórias com eles», refere a enfermeira com uma lágrima ao canto do olho.

Uma vida de histórias

Pelas suas mãos passaram milhares de doentes e dadores e, por isso, são muitas as histórias de amizade e carinho que guarda, mas há uma que a tocou de forma especial e que aconteceu quando ainda «só tinha meia dúzia dias como profissional», ainda no Hospital Velho.

«Certo dia chega às urgências um senhor que tinha tido um acidente de mota e vinha com o pé preso apenas pelo tendão de Aquiles». Sozinha no serviço e com pouca experiência, Ana Maria Meira refere que, «com as mãos a tremer que nem badalos», fez uma sutura na ferida e de seguida foi para Lisboa com o senhor.

Meses mais tarde, perto do Natal, o homem foi ver dela ao Hospital e quando a encontrou «tirou do casaco uma tablete de chocolate do Tintim, muito apreciadas na época» como forma de agradecimento pelo forma como foi tratado. «Fiz o que me competia, a minha obrigação, mas o senhor resolveu vir agradecer-me e foi a melhor prenda que recebi até hoje», confessa emocionada.

É de resto a amizade que foi ganhando pelas pessoas o melhor que Ana Maria Meira diz levar de todos estes anos enquanto enfermeira em que garante «ter feito tudo o que queria, sempre com honestidade e seriedade».

Na hora do adeus, e olhando para trás, tem a certeza que fez tudo o que podia «para ajudar o próximo» e quanto ao futuro apenas garante que «parar nunca». «Tenho projectos, quero viajar e conhecer novas pessoas e novos mundos».

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