Altino Baptista, um ícone do comércio tradicional

«São 60 anos… com expectativas de outros, não tantos mas pelo menos mais um e depois para o ano pedimos outro».

Assume-se como um «dos resistentes» do comércio tradicional portalegrense e orgulha-se de ter conseguido ultrapassar «várias intempéries» motivadas pelas crises económicas e evoluções da sociedade. Altino Baptista, «com p», como faz questão de nos esclarecer, cumpriu no início do mês de Maio 60 anos ao serviço da população e do comércio da cidade, tornando-se assim um ícone do comércio tradicional, mas também um exemplo de dedicação, trabalho e, sobretudo, persistência.

A sua retrosaria é uma das mais conhecidas lojas da Rua do Comércio e é também, por estes dias, muito procurada pelas senhoras que procuram tecidos e elásticos para a confecção de máscaras de protecção. Após uma manhã algo agitada e já perto da hora do almoço «os fregueses» vão, a pouco e pouco, desocupando a loja e a rua, deixando-nos à vontade para alguns minutos de conversa sobre o negócio, a sociedade e a vida. «60 anos são muitos dias, não?», diz-nos o senhor Altino logo após ter sido abordado pelo nosso jornal para a realização de uma entrevista, a que rápida e simpaticamente acedeu.

Devidamente equipado com uma viseira, deslocou-se para junto de uma enorme estante onde estão expostos tecidos de várias cores. Ali, com a devida distância de segurança imposta pela actual crise sanitária, falou-nos da sua vida, da sua dedicação de 60 anos ao comércio e das mudanças que vivenciou ao longo dos anos.

Altino Valério Baptista nasceu na freguesia de Urra em 4 de Junho de 1941 e viveu sempre no concelho. Depois de terminar a escola começou a trabalhar, com 11 anos, como guardador de ovelhas, tendo ainda desempenhado funções de caixeiro (empregado de balcão) na loja do senhor Camejo, em Urra, e de marçano (aprendiz) numa mercearia em Portalegre. Aos 18 anos e com a experiência já adquirida anteriormente vai trabalhar para a loja onde permanece há já 60 anos.  «A maior dificuldade foi adaptar-me ao ambiente porque na Urra trabalhava de uma forma e aqui na cidade as coisas eram diferentes porque havia outro tipo de clientes e artigos», conta o senhor Altino, adiantando que ao longo do tempo se foi adaptando e a verdade é que ali continua há 60 anos consecutivos. «Costumo dizer que sou como os gatos, que dizem que têm sete vidas ou sete fôlegos, e eu também tenho resistido às intempéries», afirma.

O início da sua actividade na loja, onde começou por ser empregado, fica marcado pelo primeiro dia de folga que obteve após sete anos de trabalho consecutivos. «O primeiro domingo que descansei, em que folguei, foi o primeiro dia em que fui empregado desta casa. Eu vim para aqui no dia 1 de Maio, que era Domingo, e foi o primeiro em que não trabalhei desde os 11 anos até aos quase 18 em que vim para aqui».

De empregado a patrão

Depois de vários anos a trabalhar como empregado do estabelecimento, «o negócio começou a correr mal», levando a que ficasse «três meses sem receber ordenado». Nesta altura difícil, Altino Baptista não baixou os braços e resolveu passar de empregado a patrão. «Não podia continuar a trabalhar sem receber por isso comecei a negociar o trespasse da loja com os meus patrões», lembra adiantando que «durante dois anos fui pagando o trespasse» com a ajuda de pessoas amigas e após investir tudo o que tinha.

Já com a loja soba a sua gerência chegou a ter dois empregados, além de si e da sua mulher, esta última que durante vários anos continuou a seu lado até que o trabalho foi diminuindo e «hoje eu sozinho dou conta do recado».

A Rua do Silêncio

Longe das enchentes de antigamente, que afirmavam a Rua do Comércio e a Rua Direita, como verdadeiros epicentros do comércio da cidade, Altino Baptista faz hoje um retrato da famosa rua onde ainda mantém porta aberta, mas que foi decaindo ao longo dos anos em termos de procura. «A Rua do Comércio é quase um deserto, sem comércio e sem pessoas», atira, garantindo que «até dá pena chegarmos à porta e não vermos ninguém». Mesmo antes da pandemia «a coisas já estavam mal e até o silêncio se ouvia» numa rua onde actualmente são muito poucos os que vão passando e comprando.

«Nos últimos 10 anos a coisa piorou», afirma o comerciante que justifica o desaparecimento da clientela do comércio tradicional com o aparecimento das grandes superfícies. «A cidade foi crescendo e foram aparecendo os supermercados, que têm praticamente tudo, incluindo estacionamento grátis. Para virem à loja do Altino têm que parar o carro longe e, como nos supermercados têm tudo, desacostumaram-se de vir à loja», refere.

Perdeu-se assim, na sua opinião, a proximidade com o comércio tradicional, o que antigamente era impensável e em que havia clientes fixas. « Na altura quando havia muito alfaiates e costureiras, em que as lojas fechavam às 21h nos sábados,  da 19h às 21h era outro dia de negócio porque as raparigas que estavam nas costuras saiam à 19h e diziam vou à minha loja, pois cada uma tinha a sua loja onde fazia as compras, e, por isso  tínhamos vários clientes desses, algumas que iam fazendo a compra para o enxoval e quando era no sábado vinham prestar contas. Agora já ninguém diz isso, embora ainda tenha algumas clientes dedicadas e desde que tenhamos os artigos que querem vêm cá. Mas já não é como antes, nem nada que se pareça», conta.

Comerciante de prestígio

Muito conhecido e estimado pela população portalegrense, Altino Baptista garante que «enquanto conseguir arrastar os pés cá continuarei». Contudo, confessa que «já pensei em fechar a loja quando tudo começou a mudar e pensei que não me conseguiria adaptar a essas mudanças». Ainda assim, não baixou os braços e, apesar de haver muitos dias em que «estou aqui a olhar para nada», continua sempre disponível para bem receber e servir todos aqueles que procuram a sua loja e os seus artigos de qualidade. A sua persistência e trabalho em prol da cidade e do comércio tradicional valeram-lhe um reconhecimento por parte da Câmara de Portalegre, em 2018, com a atribuição da Medalha de Mérito Municipal de Prata, que foi também entregue aos comerciantes João Saldanha (72 anos) e Teresa Tavares (50 anos), com quem partilha o estatuto de «comerciante mais antigo da parte alta da cidade».

Quanto ao futuro prefere ser cauteloso. «São 60 anos… com expectativas de outros, não tantos mas pelo menos mais um e depois para o ano pedimos outro». Esperamos que assim seja e que possamos continuar a contar com o seu profissionalismo, simpatia e sabedoria.