Não tem medo de trabalhar. Em 78 anos foi pedreiro, ferreiro, latoeiro, mecânico e ultimamente dedica-se a fazer peças únicas em ferro. José dos Prazeres Mendes Pires, mais conhecido em Ponte de Sor como “Mestre Zé Latas”, é o verdeiro homem dos sete ofícios. Mas foi como inventor que, numa das tardes quentes de Verão, fomos ao seu encontro para conhecer uma das obras-primas que construiu. Uma réplica do automóvel Victrix de 1911. Mas, para além do carro, foi a história por detrás deste homem que nos chamou a atenção.
É na sua oficina, espaço onde passa grande parte dos seus dias a trabalhar o ferro, que “Zé Latas” recebe o nosso jornal e é diante das suas ferramentas, meticulosamente organizadas e cheias de memórias, que recorda o início da sua vida profissional como latoeiro, profissão que vinha de família.
«O meu pai era pastor e quando o meu avô morreu, a minha avó juntou-se com um senhor que era latoeiro. Nessa altura o meu pai juntou-se ao padrasto e começaram a vender latas nas feiras e foi assim que começou a fazer latas e abriu a oficina onde chegou a ter cinco pessoas», conta o mestre.
Depois de concluir o segundo ano do liceu, o mestre deixou os estudos de lado e começou a trabalhar na oficina que era do seu pai. «Eu gostava daquilo», diz Zé Latas, que apesar de reconhecer o esforço do seu progenitor, confessa que não gostava da forma com este trabalhava. «Eu às vezes até me envergonhava do trabalho dele, mas vendo bem as coisas o homem era pastor e conseguiu fazer uma oficina, onde chegou a fundir peças para as charruas e fazia peças em ferro fundido». Foi por este motivo que decidiu partir em busca de algo melhor, onde pudesse por em prática o que conseguiu aprender apenas por si.
Na década de 60, Zé Latas, parte para o Tramagal, concelho de Abrantes, para integrar a equipa da mítica Metalúrgica Eduardo Ferreira, tempos que recorda com alguma nostalgia. «Era o operário 664 ou 666, estive lá pouco tempo, mas gostei muito de lá estar e aprendi a fazer tudo. Aliás, eu ainda gosto de aprender tudo!», refere.
Apesar de ter ganho, em 1968, o primeiro prémio de Artes Gráficas como forma de distinção pela sua criativa, ainda não era ali que Zé Latas sentia que poderia vingar na vida e continua o seu périplo pela região do Médio Tejo. «Quando saí da fábrica o meu pai ainda tinha a oficina, mas eu continuava a não gostar daquilo gostava de fazer coisas melhores e então fui para Mação comprei lá uma casita e comecei a fazer vigas em cimento», conta. Iniciava assim uma curta “carreira” na construção civil, mas, apesar de ser um novato na área, o seu trabalho não passou despercebido aos veteranos das obras. «Os pedreiros admiravam-se e perguntavam-se como conseguia eu fazer aquele trabalho se não era pedreiro. Alguns chegaram a duvidar que as vigas conseguissem aguentar», conta o mestre, garantindo que «ainda hoje lá estão as vigas». A vontade de fazer mais e melhor voltou-se a sobrepor foi por isso que o mestre decidiu voltar origens, que é como diz a Ponte de Sor, é lá que constrói um forno e começa a fundir metal. «Nessa altura derretia 50 quilos de metal em uma hora» diz-nos o mestre, que começou também marcar presença em várias feiras para escoar as suas peças. «Fazia de tudo, desde cinzeiros, candeeiros, entre outros. Era o que me lembrava», refere, lembrando que percorreu várias feiras do País, «estive em Leiria, Alcobaça, Abrantes, percorri o país de lés-a-lés».
Mas o sonho de singrar na vida continuava e é então que começa a fazer pulverizadores e alambiques para a aguardente. «Fazia um média de 3000 pulverizadores em cobre por ano», recorda Zé Latas, sublinhado que «era eu que fazia todas as peças à excepção da peça de borracha que comprava», garante.
«Ainda não era isto que eu queria», diz Zé Latas, que prossegue dizendo que tempos depois decidiu concorrer a um anúncio para encarregado na Metalúrgica da Arrentela, Seixal, onde conheceu um homem que fazia mesas e cadeiras em fórmica. Concorri e fui para lá como encarregado da fábrica sem perceber nada daquilo, há coisas curiosas! Comecei lá a trabalhar e fazia aqueles tipos de trabalho, mas decidi que haveria de continuar a fazer aquele trabalho aqui em Ponte de Sor», diz, sublinhando que já na terra «cheguei a fornecer os Centros de Formação da C.P, enchia três vagões dos caminhos-de-ferro cheios de material para lá». As mesas e cadeira que fazia tornaram Zé Latas conhecido em muitas terras e por incrível que pareça o seu trabalho chegou a Portalegre, a alguns dos locais mais emblemáticos da cidade
«Só para ali fiz 600 cadeiras para o Cristal, mas também cheguei a fazer para outros sítios para o Facha, o Castro, o Romualdo, o Maurício dos Frangos e para o Zé Maria da Serra», revela acrescentando que «quem me arranjava os clientes era um marujo».
Já no fim da sua vida profissional, Zé Latas, foi trabalhar para a “Inlan”, fábrica que produzia peças de automóveis e que posteriormente se passou a denominar ” Delphi” e que encerrou no final de 2009.
A Obra de Arte
A réplica do automóvel Victrix, cuja data de produção remonta a 1911, é o “menino dos olhos de ouro” do mestre Zé Latas, que faz questão de o mostrar em várias feiras e certames da região. Sobre o carro, o mestre conta que foi feito a partir de uma fotografia que viu numa das feiras que visitou. «A ideia surgiu-me quando fui com o meu filho a uma feira em Aveiro, aquilo é mundo cheio de motos e motorizadas e vi lá uma revista que tinha a imagem de um carro», conta, acrescentando que naquele momento olhou para a revista e disse para o filho: «Vou fazer isto». Apesar do filho não ter acreditado, segundo nos diz o mestre, o trabalho começou a ser feito. «Comecei a trabalhar neste projecto fiz as languarinas, os chassis. Eu só tinha o boneco, de resto fui eu que fiz tudo menos as borrachas», garante.
Um ano e meio depois o carro estava pronto. Na versão original o Victrix possui um motor com um cilindro de 695 centímetros cúbicos de 12 cavalos. Dispunha de três mudanças e marcha atrás, tendo sido produzido pelas oficinas mecânicas de Turim.
No entanto, Zé Latas continua a fazer da oficina a sua casa. «Eu gosto de estar na oficina para mim é o melhor de tudo, eu chego a estar aqui dias inteiros», refere, acrescentando que às vezes «perco a noção das horas». Até que consiga, este homem dos sete ofícios garante que vai continuar a trabalhar e nós cá estaremos para ver as fantásticas peças que ainda vai fazer, e que resultam do seu sonho e esforço de fazer mais e melhor.