João Trindade, o “Repórter da Cidade”

«Para mim, incomodar aqueles que estão no poder ainda continua a ser uma matriz que tenho e fico satisfeito porque tenho um feedback muito positivo por parte das pessoas», refere.

É na simplicidade das palavras que se vê a grandeza dos homens. Aos 80 anos de vida, João Trindade, o nosso “Repórter da Cidade”, veste a pele de entrevistado e conta-nos a história do homem que dedicou – e continua a dedicar! – os últimos 30 anos da sua vida a servir a população através da arte da comunicação. Pelo caminho revisitamos a história de Portalegre ou não estivéssemos nós perante o mais antigo, e por isso mais sabedor, jornalista da cidade.

Crítico das «politiquices de Lisboa», defensor feroz da imprensa local e regional, muito atento à vida da cidade e à actuação dos seus políticos, João Trindade é uma espécie de “Robin dos Bosques” do jornalismo, defendendo os interesses dos mais fracos perante os poderes instalados. Aos 80 anos continua tal como é e sempre foi. Por isso mesmo foi somando cognomes como “Vereador Sombra”, “Fernando Pessa de Portalegre” e, o mais conhecido e usual, “Repórter da Cidade”. Se o jornalismo portalegrense fosse um reino certamente que João Trindade seria coroado rei, não apenas pela longevidade mas, sobretudo, pela memória que consigo traz e pela proximidade que tem junto da população, sendo um dos profissionais da área mais acarinhados por todos os quadrantes da sociedade. Mas para lá do jornalista e das luzes da ribalta, há um homem que se iniciou ainda jovem como aprendiz de barbeiro, que fez carreira na Rodoviária e que tinha como paixões a caça e o convívio com os amigos.

Portalegrense de gema

João Francisco Trindade nasceu e tornou-se homem em Portalegre, cidade pelo a qual diz sentir «um amor imenso». Recorda uma «infância feliz» mas com «muitas dificuldades», vivida no Bairro de Santo António, conhecido pela população como bairro da Caganita (onde actualmente se localiza a Avenida Pio XII). A sua mãe dedicava-se ao arranjo de flores e o seu pai à amolação de facas e tesouras. Numa época extremamente difícil, era nas pequenas coisas que as crianças encontravam alento. «Para nós era uma grande alegria ir à Mocidade Portuguesa (localizada num dos edifícios da actual Avenida da liberdade) comer massa com grão com uma colher de óleo de fígado de bacalhau por cima», conta, lembrando ainda o orgulho que sentiu quando, por uma vez, vestiu a farda da Mocidade, «o que era complicado porque apenas era distribuída uma por cada sala de aula».

Do Bairro da Caganita lembra «as casas velhas», especialmente a do Major Carrilho «que era a maior que ali existia» e ainda «a serração de madeira que ficava onde hoje está o hospital». Mas era na tapada de D. Fernando que João Trindade e os seus amigos passavam grande parte do tempo a jogar à bola.

«Era um apaixonado pela bola e tanto assim era que quando recebi a minha primeira bola de borracha dormi com ela na cama», recorda. A paixão pelo futebol ganhou depois outra dimensão quando entrou para os juniores e chegou até aos seniores do Sport Clube Estrela, «que tive muito orgulho em representar». Foi campeão distrital duas vezes e ficou conhecido como o “Pé Canhão”.

Na escola, João era um aluno com facilidade em aprender e eram mais a réguadas que levava «não por não saber, mas por ensinar as contas» ao seu parceiro de carteira. Dos tempos passados na Escola da Fontedeira, onde concluiu a 4ª classe, recorda o gosto em aprender, tendo como professores Ângelo Monteiro e Godinho que «nos chamavam ao quadro de ponteiro e régua na mão». A facilidade em aprender faz ainda com que substituísse, mais do que uma vez, o padre nas aulas de catequese, momentos que recorda com saudade. «Aos sábados havia um padre que ia dar catequese e quando não aparecia, eu ia para a frente da mesa e dizia o Pai Nosso e a Avé Maria, que sabia de cor, e os outros acompanhavam-me».

Aos 11 anos foi aprender o ofício de barbeiro na Rua de Santo André onde ganhava um ordenado de três tostões por semana e mais tarde acertou para ir trabalhar para a Rua 5 de Outubro para a barbearia do senhor Francisco Marques, onde ganhava cinco tostões. Anos mais tarde ingressa na empresa de transportes Belos, que passou depois a Rodoviária, onde era cobrador e terminou como fiel de armazém. Mas já aqui João Trindade demonstrava o seu espírito crítico e defensor das injustiças, tendo integrado «com orgulho» a Comissão de Trabalhadores e, mais tarde, sido eleito como representante de Portalegre na Comissão de Coordenação da Rodoviária Nacional, que se reunia de oito em oito dias em Azeitão. Deste tempo recorda momentos complicados devido «às ideologias partidárias», às quais, assume, «nunca dei importância». Há, contudo, uma situação que o marcara e que nunca mais esqueceu. «Certo dia vi uma senhora que vinha a chorar do escritório porque lhe despediram o marido e eu prometi que lhe ia resolver a situação e resolvi. A partir daí fiquei a fazer a redacção dos processos disciplinares e aí as coisas começaram a correr menos bem para aqueles que lá estavam com alguma partidarite à mistura».

Homem de família

É sempre com emoção que João Trindade fala da sua família, que considera o seu grande pilar. Apesar de se mostrar reservado quanto à sua vida pessoal, recorda o dia em conheceu a sua esposa, com quem casou faz este ano 50 anos, quando era ainda cobrador na Rodoviária. «Ia a fazer a cobrança na carreira Portalegre – Nisa e quando ela entrou e pensei: É esta e mais nenhuma!». No dia do casamento «embebedei o padre com tantos copos que lhe dei». Hoje a família cresceu e aos dois filhos de quem tem «muito orgulho» juntaram-se dois netos.

Estórias da história

Durante a sua vida, João Trindade guarda muitas histórias e curiosidades que tem gosto em contar. Uma das muitas curiosidades que guarda é a sua paixão pela caça, tendo como alvo preferido a cotovia. Outra foi a manifestação contra o vinho a martelo que garante ter «dado visibilidade a Portalegre», dada a adesão que teve. Numa altura conturbada em que havia «uma militância activa» e em que «se bebia com regra», João e uns amigos factos das manifestações políticas pós-25 de Abril «organizámos uma manifestação contra o vinho a martelo com a cabeça do cortejo a estar no Hospital e a cauda no Rossio, houve intervenções no Rossio e a Casa Banana ofereceu dois barris de vinho que iam montados num Dumper à frente do cortejo».

Segundo nos relata, a multidão ia munida com cartazes e dizia palavras de ordem como “Quando o vinho não prestar é beber e não pagar”, “Água, escuta, o vinho está em luta”, “Os bêbedos unidos pedem copos mais cumpridos”.

A paixão pelo jornalismo

Depois de muitos anos ao serviço da Rodoviária, onde já tinha dado provas da sua destreza na escrita, João Trindade dedica-se ao jornalismo. Tudo aconteceu após um convite de Chambel Tomé, à época presidente da Rádio Portalegre, que o convidara para o substituir como correspondente do Record em Portalegre. Ao longo destes 30 anos colaborou com dezenas de órgãos de comunicação, passando pelas rádios Elvas, Renascença, São Mamede e Telefonia, e outros tantos jornais como Diário de Notícias, O Jogo, Diário do Alentejo, Linhas de Elvas, O Distrito de Portalegre, Fonte Nova e ainda com o boletim de Freguesias de Nisa. Actualmente continua a colaborar com a Rádio Portalegre, com o jornal Alto Alentejo e com o Diário do Sul.

De gravador e máquina fotográfica em punho, João Trindade deu voz aos problemas dos portalegrenses, combatendo e alertando os políticos e promovendo o desporto local. Foi no jornal “O Distrito de Portalegre” onde se catapultou, tendo sido convidado pelo Pe. Fernando Farinha. Chegou a ser repórter principal do jornal e admite que «nessa altura tentaram-me sanear várias vezes», até que o jornal fechou. «Foi uma saída traumática porque houve figuras da Igreja Católica que puseram de lado o trabalho que tinha feito ao longo de 20 anos e trataram-me de uma forma que eu não merecia», refere.

Destes tempos áureos da imprensa escrita de Portalegre, recorda o muito trabalho que tinha, pois tinha uma rubrica semanal no Distrito de Portalegre intitulada “Na Hora” e outra no Fonte Nova – “Acontece na Cidade” – em que «fazia critica às coisas que não se faziam na cidade», ao mesmo tempo que realizava peças para a Rádio Portalegre.

Do seu percurso conta-se ainda o inestimável contributo para o desporto regional, realizando um suplemento semanal publicado pelo Fonte Nova e a cobertura de várias assembleias-gerais dos clubes da cidade. Contributos estes que foram reconhecidos pelo Desportivo e pelo Estrela com votos de louvor pelo trabalho realizado na divulgação da vida dos clubes.

A proximidade com a polução e a resolução de muitos dos problemas existentes na cidade, marcam também a carreira do jornalista a quem se deve, por exemplo, a construção do túnel de acesso aos supermercados, no bairro dos Assentos, facto que recorda com orgulho. «Um dia apanhei uma senhora a saltar a vedação, tirei-lhe uma fotografia e escrevi no jornal “O Distrito de Portalegre” que fazia falta um túnel para ligar o bairro dos Assentos ao Intermarché», o que se veio a concretizar.

Não é por isso de estranhar que ainda hoje as pessoas olhem para si «com um sentimento de que eu posso ser útil para os ajudar». «Tenho uma grande clientela que anda sempre à minha procura. Sobretudo pessoas idosas que recordam tempos da cidade de Portalegre em que as coisas corriam melhor e não havia falta de tantas coisas, como por exemplo a limpeza, e como têm saudades desse tempo vêem em mim um elo de ligação ao poder por forma a sensibilizar as sucessivas câmaras de que os problemas são para ser resolvidos», conta.

O carinho da população valeu-lhe o título de “Repórter da Cidade”, como é apelidado por todos e é sem falsa modéstia e com a humildade que lhe é característica que assume ter consciência da importância que o seu trabalho tem junto da comunidade, apontando que «a minha grande preocupação é dar voz às pessoas». É isso que faz e promete continuar a fazer até que consiga. Para trás fica um percurso do qual demonstra «orgulho», garantindo que «durmo de consciência tranquila».

Imprensa regional «mostra a realidade»

João Trindade é indiscutivelmente um ícone da imprensa regional e por isso defende com unhas e dente este sector que, lamenta, «tem sido esquecido por sucessivos governos», apesar de ser quem «dá visibilidades aos problemas reais das pessoas». Exemplo disso, segundo o jornalista, é quando os políticos se deslocam à região e as televisões, rádios e jornais nacionais «apenas se dedicam a fazer perguntas que não têm que ver com o que está a ser discutido na região, mas sim com politiquices que estão a haver em Lisboa». «Daí que, para mim, a imprensa regional seja fundamental porque revela aos cidadãos as preocupações, as angústias, aquilo que é ou não feito».

Aos 80 anos continua a ter «gosto de incomodar o poder», pois «vejo muita conversa e depois na prática não se faz nada». E não se poupa nas críticas aos políticos. «Nos últimos anos o que é que, em termos práticos, veio para a cidade? Não se vê nada de especial. Todos fazem muitas promessas mas depois não cumprem».

«Para mim, incomodar aqueles que estão no poder ainda continua a ser uma matriz que tenho e fico satisfeito porque tenho um feedback muito positivo por parte das pessoas», refere.

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